22.3.05

Um mês depois

Um mês depois da vitória do PS nas eleições legislativas, o país entra de novo na normalidade democrática. Apresentado o Programa de Governo na Assembleia da República, Portugal arregaça as mangas - para esquecer três anos de passado (que tão penosos foram), para fazer o melhor que pode e/ou sabe, tendo em vista melhorar a vida daqueles que o habitam. Assiste-se, por todo o lado, a uma esperança cautelosa. Temos vontade de acreditar (acreditamos em segredo), mas, ao mesmo tempo, temos consciência dos problemas existentes e dos tempos difíceis que se avizinham.
Com uma maioria absoluta de deputados no Parlamento, o PS tem condições ímpares para governar o país. José Sócrates pediu esta oportunidade. Os portugueses resolveram dar-lha, entendendo - de forma racional - o que estava em jogo nestas eleições, votando pela essência e pouco pela aparência, que, nestes tempos que são os nossos, tanto prolifera. Entenderam que, nas eleições, estavam em causa os fundamentos do interesse colectivo, sem os quais nenhum sólido edifício social poderá ser construído.
A maioria absoluta de um só partido que agora sustenta o governo de Sócrates não lhe foi oferecida, no entanto, como uma espécie de carta branca. Se, em termos legislativos, os portugueses sufragaram um programa eleitoral que esperam ver cumprido - com essa atitude não disseram sim, de forma cega, a todas as propostas apresentadas. A maturidade política dos eleitores sabe distinguir as águas. Apenas um exemplo: apesar de terem votado num partido que pugnará pela realização de um novo referendo sobre a despenalização do aborto, não creio que todos aprovem a mudança da lei que restringe a interrupção da gravidez.
Com a tomada de posse do novo governo vimos negada, de uma vez por todas, a ideia de que José Sócrates é uma versão esquerdista da vacuidade de Pedro Santana Lopes. Cremos que a sobriedade com que foi conduzida a cerimónia de tomada de posse (antecedida pela discrição na formação do executivo) não é, apenas, uma estratégia de promoção de uma nova imagem do poder. Embora tenha esse resultado, acredito que significa sobretudo a manifestação exterior de uma atitude interior perante o exercício governativo, que deseja centrar toda a actividade dos ministérios numa séria estratégia de resolução dos problemas do país, dispensando todo o espectáculo mediático desnecessário para apurar uma forte coordenação visando aumento da qualidade de vida dos portugueses, a construção de um país mais estruturado.
José Sócrates não parece ter dúvidas sobre as dificuldades que tem de enfrentar. Entre outras, avulta uma multiplicidade de interesses instalados, com forte poder de influência - que o governo deverá vencer para fazer avançar Portugal. Os exemplos são variados: os farmacêuticos que desejam manter o monopólio da venda de medicamentos; os juízes que farão tudo para que o seu poder e os seus privilégios não sejam postos em causa; os médicos que tudo farão para não serem obrigados a trabalhar no interior do país; as gasolineiras que se oporão à venda de combustíveis nos hipermercados; os construtores que odiarão medidas duras de ordenamento do território; autarcas que combaterão a limitação dos seus mandatos; estudantes que rejeitarão qualquer medida que os chame à responsabilidade; empresários que torcerão o nariz a quaisquer medidas que os obriguem a respeitar os direitos dos trabalhadores...
A tarefa não se adivinha fácil. Esperemos que a força nascida de uma vitória tão esclarecedora nas eleições se concretize em medidas que cortem a direito, tendo em vista - sempre - o crescimento de Portugal.

Ruy Ventura