16.3.05

Tu também, Zang, meu filho?



Um homem entra na sala de cinema para ver "O segredo dos punhais voadores", de Zang Yimou. Meia-dúzia de pessoas na sessão da madrugada. Até aqui, tudo normal.
Um homem vai mesmo preparado para ver um filme que não lhe encha totalmente as medidas. Um homem sabe que os filmes orientais estão na moda, venham da China, Hong Kong, Japão ou Coreia. A crítica anda delirante com as orientalices cinematográficas.
Um homem até viu o "trailer", por isso não se pode queixar muito. Um homem até gostou mesmo muito de filmes do Zang, como "Ju Dou", "Raise of the Red Lanters" (não me lembro do título português) e, principalmente, "A Tríade de Xangai".
Um homem está preparado para dar um desconto.
Mas um homem não aguenta ver um Autor a fazer um cinema menor de forma superior. Um homem fica deslumbrado com uma direcção de fotografia verdadeiramente notável, com uma qualidade de som absolutamente espectacular e uns efeitos especiais à "Matrix".
Um homem fica com a alma em paz ao contemplar as cavalgadas fantásticas com a copa das árvores em fundo. Lembra o mestre Kurosawa ou a fotografia de Shoei Imamura em "A balada de Narayama". Um homem até fica maluco de prazer ao fruir a beleza plástica das cenas de combate numa floresta de bambu, numa orgia de verde de vários tons. Um homem até sabe apreciar tremendamente um duelo mano-a-mano com a neve a cair, como se fosse Estalinegrado. Um homem percebe as piscadelas de olho a "Duelo ao sol" (mas na neve), mas falta ali qualquer coisa: Gregory Peck e Jennifer Jones.
Mas um homem passa o filme quase todo com vontade de gritar: "Ah! Lin Chung!". Um homem passa o filme quase todo a lembrar-se do terrível tirano Kao Chiu. Um homem passa o filme quase todo a lembrar-se daqueles saltos impossíveis, que provocavam gargalhadas a miúdos de 12 anos.
Um homem não pode aceitar um argumento alinhavado de forma completamente incompetente, com incongruências atrás de incongruências. Um homem pode aceitar que as leis da física sejam constantemente violadas por punhais, homens e animais. Mas não valia a pena dar tantas punhaladas ao nível do argumento. Que, de qualquer forma, já é quase inexistente, servindo apenas para promover um "blockbuster" destinado a vingar num mercado de espectadores McDonald.

Um homem pode trocar as pipocas por arrozinho.
Sair da sala de mansinho e ouvir críticas completamente diferentes ao filme.
Um homem vai até ao Galeto comer uma ceiazinha. A pensar: "Tu também, Zang, meu filho?". Se calhar merecias uma bambuada no toutiço, sem receio de danificar a gramínea, que não tem culpa nenhuma.
Mas depois um homem pensa: olha que coisa, o chaval já passou dos 50 anos, também tem direito a filmes menores, ou não tem?
Sei lá...
Estou a ficar velho...
Esta mania de ir para o cinema alimentar a alma com obras-primas...

Luís Graça