15.3.05

Primeiro post de Filipe Guerra.


Dostoiévski, fotografado por Panov, a 9 de Junho de 1880

Sou tradutor dos clássicos russos, todos os dias e a toda hora; vivo, salvo seja, com eles. «Nesse clássico mundo paralelo, estás com certeza fora da realidade actual», direis. Então, olhando para tantos políticos, com Santana Lopes e Paulo Portas à cabeça, por que raio o jovem Fiódor (Dostoiévski), preso na fortaleza de Pedro e Paulo (a mais terrível do regime czarista), escreveu isto que lereis adiante no ano de 1849 e nos parece tão contemporâneo, tão nosso companheiro de hoje? Parafraseando Manuel Resende, ando a traduzir isto (do conto «O Pequeno Herói»):

«Estes senhores fazem carreira dirigindo todos os seus instintos para, precisamente, a má-língua grosseira, a censura mais míope e o orgulho mais desmesurado. Como não têm mais nada que fazer senão descobrir e registar os erros e as fraquezas alheios, e os seus bons sentimentos são tantos quantos os de uma ostra, não lhes custa nada viver a sua vidinha [...] Envaidecem-se muito com isso. Têm quase a certeza, por exemplo, de que a maior parte do mundo lhes deve pagar tributo; que o mundo é como uma ostra, de novo, que encomendam para o caso de lhes apetecer comê-la; que toda a gente, menos eles, é parva; que todo e qualquer um, que não eles, se assemelha a uma esponja ou a uma laranja que espremem quando precisam de sumo; que são senhores de tudo e que toda esta louvável ordem das coisas existe precisamente pelo facto de eles serem tão inteligentes e especiais. No seu orgulho desmedido, não admitem ter defeitos, alguns defeitos. [...] Habituaram-se de tal modo à vigarice que acabam por se convencer de que a vida é mesmo assim, isto é, aldrabar para viver; e passaram tanto tempo a convencer toda a gente de que são honestos que acabam por se convencer também de que o são e de que a sua vigarice é precisamente isso: honestidade. [...] Colocam em primeiro plano, sempre e em tudo, a sua pessoa, que é a sua jóia preciosa, o seu Moloch e o seu Baal, o seu ego magnífico. [...] Têm uma frase feita de reserva para tudo, uma frase que - cúmulo da sua habilidade - é a frase que está na moda. [...] Costumam munir-se das suas frases, sobretudo, para exprimirem a sua profundísssima simpatia pela humanidade, para definirem qual a mais correcta e razoável filantropia [...]. Não reconhecem a verdade na sua forma incerta, transitória e não acabada, rejeitam tudo o que ainda não amadureceu, não se estabilizou, tudo o que está ainda a fermentar. O homem cevado vive toda a sua vida alegremente, com tudo feito e servido, nunca fez nada nem sabe como é duro o trabalho [...] Resumindo: o meu herói é nem mais nem menos do que um saco gigantesco, cheio até não caber mais, atafulhado de sentenças, de frases da moda e de etiquetas de todos os géneros.»

Filipe Guerra