17.3.05

Exilado no Quarteto.



Sinal dos tempos, onde já vão as meias-noites do cinema Quarteto, a Universidade Cinematográfica da Rua Flores do Lima! Hoje fui "obrigado" a colher uma sessão das 21 e 45, para não deixar fugir "Exílios", do realizador argelino (Argel, 1948) Tony Gatlif.
Sentei-me na cadeira e a sala estava vazia, tal como o átrio. Da última vez tinha ficado só na sala, imerso na solidão de estar rodeado de tubarões.
Desta vez, os "exilados" acabaram por chegar a uma dezena.
Abre-se o ecrã com uma música crua, em grande plano sobre as costas de Romain Duris, o principal motivo que me levou a ver o filme, já que apreciei sobremaneira a comédia "O albergue espanhol".
Romain Duris está todo nu, à janela. Depois deixa cair um copo para a rua e a cerveja desce vertiginosamente uns bons 15 ou 20 andares. Duris vira-se e fica em nu frontal. Na cama está deitada, a olhar para ele, Lubna Azabal. Nua. A comer gelado e a ouvir música.
O filme está enunciado nesta abertura: nudez, crueza, música forte, marcadamente étnica, desilusão, desenraizamento. Um pouco como na abertura de "Bonnie and Clyde". Mas os rostos que Tony Gatlif escolheu estão longe do glamour hollywoodiano de uma vedeta em ascensão como Warren Beaty e uma diva a estrear-se nos patamares da glória: Faye Dunnaway.
"Road movie", um pouco como "Easy Rider", este "Exílios" fica a meio caminho entre a ficção e o documentário. É um projecto muito pessoal, ou não tivesse Gatlif composto grande parte da música para o filme, escrito o argumento e redigido o guião.
Gatlif, nascido em Argel e com raízes romenas na família, parte em cruzada à descoberta do mundo magrebino e cigano, com passagem pela zona de Sevilha, Marrocos e Argélia. Nem sequer faltam os ciganos portugueses!
A busca de raízes de Duris na Argélia é acompanhada pelo percurso de sensualidade autofágica de Lubna Azabal, um dos trunfos maiores do filme, a transpirar sexo (ou desespero?) por todos os poros, numa das presenças mais fortes dos novos rostos do cinema europeu.
Nota-se que Gatlif deu muita amplitude de movimentos aos actores. A sua câmara passeia pela estrada e detém-se nos rostos dos marroquinos e argelinos com uma grande autenticidade. Tudo é credível. Como num documentário do "Odisseia" ou "Discovery", mas com uma carga demasiado crua para poder ser um documentário normal.
Diz-se pouco. Mostra-se muito. Expõe-se a paleta de sentimentos humanos e exibe-se sem pudores a diferença entre o modo de vida ocidental e uma África bem próxima da Europa e afinal tão longe, em que a língua francesa funciona como uma ponte.
Às vezes o filme parece quebrar, mas depois endireita-se. Não é uma obra-prima. Mas é suficientemente consistente para poder reivindicar-se como um objecto raro no panorama actual do cinema europeu.

Luís Graça