29.3.05

Escritores portugueses no estrangeiro.

Corações bondosos não são para o nosso tempo. Um tipo que se pseudo-denomina Pseudoníbal umas vezes e, outras vezes, Tancredo Bustelo, inunda a minha caixa de correio electrónico com os seus textos miseráveis (às vezes cópias disfarçadas da «Jangada de Pedra»). Trata-me por Doutor, Professor e Insigne Literato (e não está a gozar). Acha, a sério, que eu sou um insigne literato e que tenho influência no meio. Quer que eu faça com que o publiquem (insta-me). Apesar de se ver que é um homem culto e sincero, mandei-o passear, mas escritor que se preza não desiste. Pedi-lhe o nome e a morada. Está bem, está! Só me disse que era do Norte. Agora obceca-me. Ultimamente mandava versos que até podem ser bons (hoje em dia, quem sabe?); vou mandá-los avaliar. Ponho-me a pensar nos pseudónimos dele: Pseudoníbal é ridículo mas claro; mas Bustelo... De repente, fez-se-me luz: Bustelo é uma aldeia, ou vilória, da Galiza, província de Ourense, já por lá passei. O homem, às tantas, é galego! Mas não, porque escreve num português natural e tem aquela coloquialidade culta que, enfim, só um português de berço e criação. Queres ver que o sacana é galaico-português?! A Galiza para mim é tudo, terra do meu pai, há muitos anos que lá não vou, Rosalía de Castro e tal... Basta dizer que na minha família camponesa portuguesa do Norte, quando eu era menino e me mandavam fazer um recado, ainda me diziam para ir a modinho (isto é, com calma, sossegadito). Pois um dia o Bustelo deixou cerce de me escrever. Mas eu já estava obcecado e, com o meu coração bondoso, mandei-me para a Galiza para ajudar o homem. A Galiza moderna desiludiu-me: muita jogatana, muito putedo, muita droga, não gostei. Cheguei a Bustelo, entre as fragas, por um resplandecente fim de tarde de Março, estavam uns homens num largo e não foi difícil informar-me: «Português, aqui? Ah, é o Alfredo Português!», disseram eles (omito os «caralhos» próprios da fala galega). Lá está, o homem chamava-se Alfredo (daí o Tancredo) e era português. Fui a casa dele. A mulher, uma portuguesa gorda, pensando que eu era um velho amigo português do seu Alfredo, com o gesto da mulher resignada-farta-desconfiada-moira de trabalho e com as palavras «agora deu-lhe para o computador», abriu-me acesso imediato aos quartos de dentro. Alfredo recebeu-me mal, frio, nem um copo de vinho, um abraço, nada. Riscara-me da sua vida. Só me disse: «Tenho um livro, mas vai ser editado em castelhano (a gorda encolheu os ombros, revirou os olhos), traduzido pelo Saramago (Professor Saramago, explicitou) e esposa». Estejamos atentos.

Filipe Guerra