Direitinho regressa ao campo
"Um sorriso inesperado" (Edições Asa, Fevereiro de 2005) marca o regresso de José Riço Direitinho às livrarias. Um acontecimento, pois o seu último trabalho ("Histórias com cidades") data de 2001.
É um homem calmo e fleumático, este meu amigo, que conheço desde os tempos do DN-JOVEM. Logo aí me apercebi do seu grande talento para escrever e da capacidade de inundar de ternura as aventuras e desventuras do amor adolescente. Com "Breviário das más inclinações" conquistou-me definitivamente, mergulhando num universo muito particular.
Agora, com "Um sorriso inesperado", Direitinho escreveu um pequeno livro de contos salpicado de morte por todos os lados. Começando pela belíssima capa, que pode ser interpretada como um anoitecer na bruma da vida, com um ténue raio de sol a acender a esperança.
"Na noite em que ele faltou na adega para a despedida de solteiro, preparou em vinho quente uma infusão de raiz de sardónia depois de ter comido um cozimento de folhas de damiana. Desta erva tinha ouvido contar aos homens mais velhos
(quando nas romarias dos meses quentes se embebedavam e se juntavam à volta de uma fogueira a cortar nacos de uma cabra assada) que, depois de cozida em pouca água e mastigada com demora, trazia a todos a mítica virilidade da juventude".
(página 23 de "Um sorriso com sardónia").
Em 102 páginas, Direitinho embalsamou todo o desespero da Humanidade, cravado a golpes de estilete literário. À familiaridade profunda com a vida do campo, o autor junta uma enorme minúcia descritiva. É patente o gosto de contar uma história, o que é feito com enorme maturidade, através de uma escrita que não é de "usar e deitar fora". As pessoas e a Natureza misturam-se de forma ordeira, mas há um certo fatalismo árabe a impregnar a narrativa. É fácil imaginar o universo de Direitinho desenhado pelo pincel do banda-desenhista belga Comès.
A estrutura literária é "lobo-antunesiana" (coisa normal, para quem escolheu Lobo Antunes na semana em que o DN-JOVEM propôs um texto "À maneira de...", já lá vão mais de 20 anos), com vários socalcos narrativos que se sobrepõem uns aos outros, para voltar ao ponto de partida e rematar depois a história.
Não é fácil escrever desta forma. As peças do quebra-cabeças têm de estar muito bem montadas. O leitor fica também implicado num esforço de compreensão que lhe exigirá um tempo de meditação.
Os títulos dos contos são, à partida, todo um programa: "Um sorriso com sardónia", "As flores das estevas chegaram com a manhã", "Sóbrios cheiros premeditados", "Amor num aroma intenso a jasmim", "O fidalgo louco".
São histórias de desejo por saciar, como um cutelo agressor que nos rebenta as têmporas.
"Ele aninhou-se no que restava das paredes esbranquiçadas de farinha do velho moinho-de-água; e ficou a olhá-la durante muito tempo.Só se mexeu quando ela se despiu e entrou nua na água, segurando com ambas as mãos os longos cabelos ruivos sobre as costas muito brancas e sardentas. Viu-a nadar, sair da água, e caminhar devagar até onde deixara as roupas e depois enxugar-se no lento calor da tarde.
Durante longas horas ele pensou ter enlouquecido; e só a muito custo conseguiu sair do moinho e encaminhar-se sem pressa para a aldeia; isto aconteceu muito tempo depois de o Sol ter desaparecido nos cerros do outro lado da raia".
(página 50 de "Sóbrios cheiros premeditados")
É um livro de dores, de esperanças frustradas, de pequenos peões à deriva na brisa do destino. Com os homens e as mulheres enredados em ervas perigosas, mágicas e enfeitiçantes como beladona, estramónio, erva-damiana, sardónia, dedaleira ou absinto.
"- Te voy a joder, niña!
- Jódeme!
Foi a única coisa que eu consegui dizer (entre o espanto e o medo) naquela manhã em que os olhos se me encheram de lágrimas, depois de o homem se ter retirado de mim e de eu ter sentido um grande asco da sua baba branca de boi".
(página 66 de "Amor num aroma intenso a jasmim").
Este homem sabe escrever. E contar uma história.
Luís Graça
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