Post Scriptum #501
Carta do Vidente
Arthur Rimbaud
[Carta escrita por Rimbaud a Paul Demeny no dia 15 de Maio de 1871. A carta começa por apresentar um poema do autor ("Chant de Guerre Parisien") dedicado à Comuna e prossegue depois da seguinte forma - Tradução provisória de Manuel Resende]
- Eis agora uma prosa sobre o futuro da poesia -
Toda a poesia antiga desemboca na poesia grega, Vida harmoniosa. - Da Grécia ao movimento romântico - Idade Média -, há letrados, versificadores. De Énio a Teroldo, de Teroldo a Casimir Delavigne, tudo é prosa rimada, um jogo, rebaixamento e glória de inúmeras gerações idiotas: Racine é o puro, o forte, o grande. - Se lhe soprassem nas rimas, se lhe baralhassem os hemistíquios, o Divino Tolo seria hoje tão ignorado como um qualquer autor de Origens. - Depois de Racine, o jogo ganha bolor. Durou dois mil anos!
Nunca ninguém julgou devidamente o romantismo. Quem o poderia julgar? Os Críticos!! Nem brincadeira, nem paradoxo. A razão inspira-me mais certezas sobre o assunto que cóleras alguma vez teve um Jovem-França (1). De resto, os novos que detestem quanto queiram os antepassados: estamos em casa e temos tempo. Os Românticos - que tão bem provam que a canção é tão raramente obra, quer dizer, pensamento cantado e compreendido do cantor.
Com efeito, EU é outro. Se o cobre acorda clarim, a culpa não é dele. Para mim, é evidente: assisto à eclosão do meu pensamento: fito-o escuto-o: dou com o golpe de arco no violino: a sinfonia tem um estremecimento nas profundidades ou salta de súbito para a cena.
Se os velhos imbecis não tivessem encontrado do Eu apenas o significado falso, não teríamos que varrer esses milhões de esqueletos que, há um tempo infindo, acumularam os produtos da sua inteligência vesga, proclamando-se seus autores!
Na Grécia, disse eu, versos e liras ritmam a Acção. Depois disso, música e versos são jogos, entretenimentos. O estudo desse passado encanta os curiosos: vários regozijam-se a renovar essas antiguidades: ? a coisa é para eles. A inteligência universal sempre largou as suas ideias naturalmente; os homens colhiam uma parte desses frutos do cérebro: agia-se por, escreviam-se livros disso: tal era a marcha, que o homem não se trabalhava, não estava ainda desperto, ou ainda não na plenitude do grande sonho. Funcionários, escritores. Autor, criador, poeta, tal homem nunca existiu!
O primeiro estudo do homem que quer ser poeta é o seu próprio conhecimento, inteiro. Tenteia a alma, inspecciona-a, tenta-a, aprende-a. Logo que a saiba, tem de a cultivar: parece simples: em todo o cérebro consuma-se um desenvolvimento natural: tantos egoistas se proclamam autores; e há tantos outros que a si próprios atribuem o seu progresso intelectual! ? O que há a fazer, porém, é a alma monstruosa: como fazem os comprachicos (2), pronto! Imagine um homem que implante e cultive verrugas na cara.
Digo que temos de ser videntes, de nos tornar videntes.
O Poeta faz-se vidente por um longo, imenso e ponderado desregulamento de todos os sentidos. Todas as formas de amor, de sofrimento, de loucura; procura por si próprio, esgota em si próprio todos os venenos para só lhes guardar as quintessências. Inefável tortura em que precisa de toda a fé, de toda a força sobre-humana, em que se torna entre todos o grande doente, o grande criminoso, o grande maldito - e o supremo Sábio! - Com efeito, chega ao desconhecido! Visto ter cultivado a alma, já rica, mais que ninguém! Chega ao desconhecido; e quando, apavorado, acabasse por perder a inteligência das suas visões, tê-las-ia já visto! Que rebente no seu salto pelas coisas inauditas e inúmeras: outros virão, horríveis trabalhadores; começarão pelos horizontes em que o outro tombou!
- Segue dentro de seis minutos -
[Rimbaud intercala aqui um "segundo salmo hors texte" - Mes Petites amoureures]
- Prossigo -
O poeta é pois verdadeiramente ladrão de fogo.
Está encarregado da humanidade, dos próprios animais: terá de fazer com que as suas invenções se sintam, se apalpem, se escutem. Se o que traz de longe tem forma, ele dá forma; se é informe, dá algo de informe. Encontrar uma língua; - De resto, uma vez que toda a palavra é ideia, virá o tempo de uma linguagem universal! É preciso ser académico ? mais morto do que um fóssil ? para completar um dicionário, seja em que língua for. Se um fraco se pusesse a pensar na primeira letra do alfabeto, bem depressa poderia precipitar-se na loucura! ?
Essa língua será língua da alma para a alma, língua que resume tudo, perfumes, sons, cores, pensamento que agarra o pensamento e o puxa. O poeta definiria a quantidade de desconhecido que desperta no seu tempo, na alma universal: daria mais do que a fórmula do seu pensamento, que a anotação da sua marcha para o Progresso! Enormidade que se torna norma absorvida por todos, seria verdadeiramente um multiplicador de progresso!
Esse futuro será materialista, como vê. - Sempre plenos do Número e da Harmonia, os poemas serão feitos para ficar. - No fundo, seria ainda um pouco a Poesia grega.
O ar eterno teria as suas funções, como os poetas são cidadãos. A Poesia já não ritmará a acção; ir-lhe-á à frente.
Esses poetas existirão! Quando se quebrar a infinita servidão da mulher, quando ela viver para si e por si, tendo-lhe o homem ? até agora abominável ? dado o seu mote, ela será também ela poeta! A mulher encontrará desconhecido! Os seus mundos de ideias serão diferentes dos nossos? - Encontrará coisas estranhas, insondáveis, repelentes, deliciosas; colhê-las-emos, comprendê-las-emos.
Enquanto isso, peçamos ao poeta novidade - ideias e formas. Todos os hábeis em breve poderiam julgar ter satisfeito o pedido: - não é isso!
[?]
(1) Movimento de escritores românticos dos anos 30 do século XIX que exageravam as suas radicalidades literárias e políticas.
(2) Saltimbancos que raptavam crianças para as deformarem e as apresentarem aos reis e poderosos como monstros para entretenimento. O romance "L'Homme qui rit" de Victor Hugo trata desse problema.
NT: Será "desregulamento" ou "desregramento"? Parece-me mais a primeira hipótese.
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