16.2.05

Post Scriptum # 495



Nitin Mehta
(Índia, n. 1944)

UMA MEDITAÇÃO DOS TEMPOS MODERNOS

Nem todos os demónios
são cruéis, depravados e infames
o tempo todo.

Alguns deles são bastante diferentes.

Na verdade, alguns
repousam debaixo do vosso relógio de pulso,
fazem as suas abluções de manhã,
inspiram a brisa fresca que sopra do rio
e permanecem em silêncio com os olhos fechados.
Por vezes, meditam
sobre as palavras de sabedoria
que os santos recitaram.

É verdade
que as sombras desses santos
sofrem graves ataques de tosse

quando estes demónios
que não sabem bem a sua casta ou passado
começam a bater furiosamente as asas
como papéis que esvoaçam de uma secretária.
Asas que parecem o céu preso debaixo de um pisa-papéis.

Mas, por vezes,
numa tarde laranja
mesmo ao despertar
da siesta,
um fósforo deita fogo à sua orelha
e uma maçã podre, meia mordida
rebenta por debaixo do seu relógio de pulso
com um jacto de sangue.

O céu congelado no pisa-papéis
é despedaçado,
sombras transformam-se em bolhas,
partem-se pulseiras,
a virgindade é perdida,
e choros sufocam e contorcem o ar em volta.
Nesse momento,
os papéis e a secretária
lançam-se no ar
à procura das suas origens.
Enrolam-se, pegam fogo por todos os cantos.
Como ramos partidos
caem no chão.

É isto que acontece.

Nada mais do que isto.

Só quando o demónio arrancou o seu molar podre
ou
quando o lado esquerdo do santo começa a doer
ou
quando os actores se esquecem das suas deixas
apenas aí, algo mais
começa realmente a acontecer.

Mas,
a tarde laranja
tem uma história diferente para contar
pelo menos

por agora.


Tradução de Pedro Amaral, a partir da versão inglesa de Abhay Sardesai e do próprio Nitin Mehta.