28.2.05

Mar Adentro



Marejaram-se-me os olhos de brumas galegas. Pelo meio do mar, pelo corte da névoa, pelos corpos inertes. O sabor do som de Carlos Nuñez a percorrer as veias, o rosto de Bardem a fixar-me em grandes planos que nunca acabam mais. E têm apenas o tempo exacto.
Entre as terras do Boiro, a Corunha e Barcelona. Num voo de águia sonhado. Um corpo a voar como Mary Poppins. Um sonho de morte que não é consentida.
Ainda e sempre a arte de Bardem. A viver o papel em busca da morte. Bardem tão diferente de "Los lunes al sol", de "As Idades de Lulu", de "Jamón, Jámon", de "Huevos de Oro".
Bardem (Ramón Sampedro) em luta por uma morte digna, contra tudo e todos. A família que o ama, as mulheres que se aproximam, a Igreja que se opõe, a Justiça que não tem leis suficientes.
Almenábar faz o que é preciso. Filma com uma veracidade inatacável. Dispõe de um extraordinário "casting". Documentário? Um tanto. Drama? Um tanto. Filme-tese? Sem dúvida.
É impossível não estarmos na cama ao lado de Bardem, é impossível não voarmos com ele sobre as águas galegas. Mas Almenábar preocupa-se em dar voz a todos.
"Mar Adentro" é uma luta corpo-a-corpo com os nossos medos, com a D. Ceifeira que nos espera à esquina, a afiar o gadanho. Mas não deixa de ser um filme com duas horas de uma intensa ternura. Nunca os olhares foram tão intensos como neste filme. Nunca os sorrisos chegaram tão perto do espectador. Almenábar consegue encher o ecrã com dois rostos colados sem nos sentirmos invasores.
A Galiza toca-nos no ombro com o seu fatalismo, a sua teimosia, as suas chuvas de Junho, as brumas da desgraça a bater à porta. E uma perturbadora beleza natural. Um elfo céltico a tocar gaita-de-foles. Um trevo verde de esperança. E quando se acaba a esperança?
Quando o coração está todo ocupado pelo sofrimento?
Resta a dignidade.
Tomem fôlego e vejam.

Luís Graça