Ilha dos Amores # 123
Ainda a propósito da exposição de pintura de Nicolau Saião, patente no Instituto Politécnico de Portalegre, até 25 de Fevereiro, recebemos este texto de Ruy Ventura.
NICOLAU, PINTOR
Antes de conhecer Nicolau Saião como poeta e como cidadão, conheci-o como pintor. Melhor dizendo: antes de contactar com a poesia e com a vertical acção cívica deste Homem, comecei por me interessar pela sua pintura. Houve mesmo uma época em que, para mim, ela era apenas pintor - não me passando sequer pela cabeça que navegava, sobretudo, nos oceanos da Poesia.
Recordo bem o dia em que descobri os seus quadros. Tinha 15/16 anos. Visitando, em Portalegre, uma exposição de artistas alentejanos na encantadora galeria situada - estranha vizinhança... - entre a igreja do Espírito Santo e os sanitários públicos, fui encontrar duas obras que me tocaram particularmente, pela sua estranheza, pela sua capacidade de penetração, através das cores e dos traços, na Alma humana. Uma das pinturas tinha o vidro partido, colado com fita-cola, o que lhe dava um interessante aspecto subversivo, no meio de alguns óleos com farpela lustrosa, mas com corpo mal-asado.
Quando, mais tarde, comecei a conhecer a obra escrita de Nicolau Saião, foi-se desenhando uma convicção que não mais deixei (e tenho aprofundado): a sua pintura é inseparável da sua poesia. Criação plástica e criação verbal são duas vertentes da mesma montanha, de que fazem parte também as suas crónicas e os seus ensaios (felizmente) heterodoxos, tábuas diversas de um retábulo ainda em crescimento.
Surrealista na melhor acepção da palavra, Nicolau Saião vem construindo há mais de trinta anos uma obra plástica dotada de coerência assinalável. Sem se revestir de monotonia, vai tocando diversas técnicas de expressão e múltiplas formas de representação, para melhor interpretar as imagens interiores e exteriores que a dominam. Chamo-lhe "surrealista" não apenas por ter integrado o movimento logo no início dos anos '70. Fugindo deliberadamente do catecismo banal que muitos epígonos vão imitando com maior ou menor técnica, os quadros de Nicolau assumem aquilo que, de melhor, o verdadeiro Surrealismo nos tem trazido: a libertação total do ser humano e a abertura dos seus olhos a um Universo cheio de maravilha, mesmo quando as sombras desejam obscurecê-lo.
Dramaturgo com obra publicada (ignorada pela companhia portalegrense - o que se lamenta...), autor da poesia intensa d' Os Objectos Inquietantes, de Flauta de Pan e d'Os Olhares Perdidos - Nicolau Saião parece querer corporizar, também na pintura, "a grande aventura" que, segundo Fernando Batalha, no nosso interior "se desenrola".
Com uma liberdade notável, tem construído centenas (milhares?) de obras que combinam - com sabedoria - a nostalgia e o encantamento, imagens vindas da infância com o nojo da hipocrisia social, ironia e sarcasmo com uma religiosidade que tantas vezes timidamente assoma. Traço e cor reúnem-se para elevar formas mais ou menos nítidas, retratos mais ou menos claros - elementos que ultrapassam a representação do real para criarem outra realidade, inquietante e misteriosa.
Desassossega-nos, a sua pintura. Com uma figuração internamente multiplicada, com paisagens povoadas por pequenos seres e por pequenas coisas, faz-nos sentir estrangeiros neste mundo de onde se vai ausentando o maravilhoso, que ela contém na sua plenitude.
Abstraccionista e/ou trabalhador incansável de um figurativismo que atrai quem se aproxima sem preconceitos - creio não errar se afirmar que (mesmo fora dos circuitos comerciais) a pintura de Nicolau Saião será reconhecida pela sua inegável originalidade (reconhecimento que já começa a desenhar-se, em benefício da Arte portuguesa).
(Ruy Ventura)
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