25.11.04

Umbigo #109



AS ESTRELAS SOBRE A CASA

Fez agora um mês que me faleceu um companheiro e um amigo de largos anos. Lá o fui acompanhar onde repousa agora - na minha vila de Arronches.
De postura cordial e participativa, tinha bom relacionamento com escritores, pintores e mesmo políticos, além de outras pessoas do meio intelectual - bem assim como com simples cidadãos quotidianos, pois tratava toda a boa gente por igual. A sua atitude merecia aliás de todos os que o contactavam uma palavra de simpatia, que ele retribuía à sua maneira. Mesmo por confrades estrangeiros ele era estimado, embora lhes conhecesse mal a língua. Anos depois de o terem conhecido cá, quando me escreviam lá dos seus países sempre perguntavam por ele com um tom de cordial afecto.
De pequena estatura mas com uma personalidade vincada, impunha-se à amizade e ao respeito pelo seu perfil amistoso e tranquilo. Diversos autores lhe dedicaram versos, vários pintores lhe fizeram o retrato.
Uma insuficiência renal acabou com anos de convivência estimulante. E em mim cresceu uma grande amargura, mas nessa altura recebi o acalento de muitos dos seus amigos. A Sandra Costa e o Ruy Ventura, por exemplo, que acompanharam a progressão da sua doença, mal ele partiu enviaram belos e comoventes poemas que aqui vos deixo como homenagem mínima a esse companheiro que não esquecerei e que eu mesmo levei à terra, sob uma oliveira do quintal onde tanto gostava de andar.
Chamava-se Clóvis Artur. Tinha os seus13 anos. Era o meu cão - e nunca, nunca mais terei um outro.

Nicolau Saião

Havia os passeios pelos pinhais/ os fins de tarde e as casas abandonadas./ A nostalgia de certos silêncios à espreita/ atrás das portas semiabertas./ O cair das sombras nos precipícios:/ suponhamos certas ausências repercutindo/ na escuridão como ecos sem um som de onde partem.// Havia ao longe um latido familiar/ perseguindo a luz dourada do Outono/ (folhas secas pelo ar).// Um cão, antes de morrer,/ abana a cauda para dizer/ do amor/ o que permanece.
(Sandra Costa)

alimento esta casa e a oliveira/ com memória, com sangue - a alegria/ que na vossa mão pus em cada dia,/ guardando no meu corpo a terra inteira.// junto do fogo - da alma, da lareira -/ guardei nos olhos a sabedoria/ desses caminhos que bem conhecia,/ da clara água fresca da ribeira.// lanço na terra a minha semente/ (feita de carne, de ossos, de saudade)/ fertilizando tudo, toda a gente.// a raiz trará vento, tempestade -/ uma sombra talvez na tarde quente,/ voz soando por toda a eternidade.
(Ruy Ventura)