Post Scriptum # 423
Segundo poema de Antonio Colinas (Espanha, 1946), numa tradução inédita de Ruy Ventura.
PARA A FIGURA DE UM CRISTO ACHADA ENTRE O LIXO DE UM ESTÁBULO
Não estavas nas neves imensas dos montes,
na neve que ardia em seu silêncio;
nem no clamor feliz dos nossos gritos
além no mais profundo dos bosques.
Não te pude encontrar tal como és
nos versos da pobreza e da piedade de Rilke,
que lia de noite à luz da vela;
nem no Nascimento Místico de Sandro Botticelli,
que, desde que o vi, não deixa de viajar na minha memória
com sua coroa de anjos,
como viaja uma fogueira, e a vai adormecendo;
nem na tormenta ou na loucura formosa
da ebriedade de Bach.
Não estavas na ermida fechada a cal e canto,
calada na ladeira como lábios dum anjo
por dedo de silêncio.
Nem estavas na casa de pedra da aldeia
que, no fim dos vales, nos deixaram
naquele fim de semana.
Não estavas nem sequer no amor
dos meus, dulcíssima
coroa de sangue em torno da mesa;
nem naquela ramagem
de mãos que estendíamos para o lume aceso.
(A oferenda de nos amarmos entregue pelas chamas!)
Nem sequer estavas na hóstia
vermelha que era a lareira da cozinha.
Tu estavas fora, por trás da janelita
com musgo e com orvalho,
por trás dos objectos mortos da arrecadação,
depois do horto envolto
em névoa, por trás dos olhos medrosos,
lastimosos, da cadela.
Fui entrando no estábulo
onde há muitos anos ninguém penetrava.
E não conseguia perceber por que o fazia.
E na palha mole e ressequida
do chão, no lixo morto,
o meu pé tropeçou em algo.
Era um pequeno braço de bronze o que assomou,
e nele uma mãozinha se agarrava
(não sei se com terror se com doçura)
a um cravo afiado.
Devagar, agachei-me para agarrar
o cravo frio (aquele que eu cria
que abrasava).
E fui tirando aquela mão e aquele braço
até que vi sair (com uma mancha
de sangue sobre o peito)
a cabeça e o corpo de um Cristo sem a sua cruz.
Já libertado do lixo,
aquele corpo de bronze parecia
tremer sobre a minha mão
como um pássaro tíbio.
E contemplei os seus pés, seus braços estendidos,
cravados na luz
de ouro do estábulo.
In Tiempo y Abismo.
Tradução inédita de Ruy Ventura.
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