29.11.04

Post Scriptum # 422


A CLAREZA SUBTIL DE ANDRÉ GIDE

Os clássicos da literatura caracterizam-se, julgo, por, independentemente da época em que são lidos, transmitirem uma série de conceitos e reflexões válidos e imprescindíveis para a compreensão do ser humano. Recentemente li "Os Moedeiros Falsos" ("Le Faux-monnayeurs"), considerado um romance maior do século XX, que voltou a estar disponível no mercado editorial português pela Âmbar. Ao lê-lo, senti aquele assombro que aparece sempre que se descobre um segredo bem guardado, com o qual nos identificamos, ainda que com algum embaraço, e que nos reconcilia com os nossas mais conturbadas e indizíveis sensações. E que bom é percebermos, afinal, que essas sensações podem ser ditas; ainda por cima de uma forma exemplar.
André Gide (1869-1951) assina em 1925, 22 anos antes de ganhar o Nobel da Literatura, uma obra invulgar, vanguardista e subversiva. O autor francês equaciona neste romance alguns dos temas que o acompanharão sempre. Através de uma construção complexa mas não hermética, e de uma clareza cheia de subtilezas, o autor conta a história de várias personagens - todas com igual importância - e dos seus prováveis e improváveis relacionamentos. Duas das personagens apresentam-se nas páginas iniciais. Bernard e Olivier são adolescentes de famílias da alta burguesia que vivem uma amizade profunda através da partilha intelectual e ideológica.
A vontade que têm de traçar o caminho da sua liberdade individual vai afastá-los logo no início. A vida de ambos acaba por se desenvolver à volta de outra personagem fundamental - Édouard, tio de Olivier, uma espécie de "alter-ego" de Gide.
O autor experimenta aqui a complexidade das relações humanas. Reflecte sobre o tema ao ponto de ser profundamente analítico do funcionamento emocional e intelectual do indivíduo em relação a um outro. O desejo, o medo e a insegurança de não se ser amado são as observações principais.
Misturando vários géneros, desde o epistolar ao diarístico, passando pela narração mais clássica, Gide aborda de uma forma clara mas nunca verdadeiramente explícita temas "marginais" e delicados como a homossexualidade, o colonialismo, a opressão do puritanismo religioso ou o cinismo dos círculos literários parisienses da época. "Os Moedeiros Falsos" é uma lição de destreza intelectual.


Luísa Marinho