30.11.04

Ilha dos Amores #112



Para abrir a manhã, mais um excelente texto de Luísa Marinho, desta vez dedicado à série televisiva "Anjos na América", que é reposta hoje na RTP 2.

SÉCULO XX: O MUNDO ENVELHECEU TANTO!

Nova Iorque, anos 80, madrugada. Prior Walter, um homosexual seropositivo, tem (mais) uma alucinação aterradora a meio das suas já recorrentes insónias. Os seus antepassados medievais atormentam-no. Chamam-lhe "profeta" e pedem para ele dançar com quem ama. Walter lembra-se do companheiro - Louis - que o deixou por ter horror à decadência física. Logo
se abre diante dele um palco "kitsch", com coraçoezinhos cor-de-rosa e tudo, aberto para uma grande escadaria à musical da Broadway, por onde desce, vestido a rigor, Louis. Os dois amantes dançam ao som de "Moon River" (o comovente tema que Mancini compôs para o filme "Breakfast at Tiffany's"). Os antepassados de Prior olham perplexos para a cena. Um observa "ele é um sodomita!" ao que o outro reponde "cala-te! Deixa-os dançar". A música segue cada vez mais alta - "Moon River, wider than a mile / I?m crossing you in style some day / Oh, dream maker, you heart breaker / wherever you're going I'm going your way / Two drifters off to see the world / There's such a lot of world to see / We're after the same rainbow's end / waiting 'round the bend / my huckleberry friend / Moon River and me" - o primeiro antepassado exclama qualquer coisa como "século XX: o mundo envelheceu tanto!"
Não sei se esta cena de "Anjos na América" ("Angels in America"), série que é reposta a partir de hoje e até sábado na RTP 2 (23h00), é exactamente assim. Mas é pelo menos assim que me lembro dela: rica em referências estéticas e conceptuais, de uma densidade emocional rara em televisão e profundamente certa. Baseada na peça de teatro de Tony Kushner, vencedora de um prémio Pulitzer, esta mini-série realizada por Mike Nichols (o mesmo que nos anos 60 realizou os inesquecíveis filmes "Quem Tem Medo de Virgínia Woolf?" ou "A Primeira Noite") parte da problemática da sida para fazer uma reflexão profunda sobre os limites da tolerância humana em épocas de crise. Fala-se aqui das questões que a epidemia levantou. Equaciona-se o medo do desconhecido - seja a morte, a religião ou o desejo - e a possibilidade ou não de a ele resistir. Conta-se a história de um mundo velho e triste que só em (cada vez mais raros) sonhos vislumbra a felicidade. É um mundo onde as novidades são sempre más e o peso das milhares de gerações que nos antecederam parecem sufocar a criatividade e o futuro. Necessita-se de sangue novo e limpo. Os seropositivos aparecem como aqueles que vão purgar os males da humanidade com as suas cicatrizes abertas e a vivência próxima da morte, que começa logo na incompreensão e no abandono. "Anjos na América" reivindica um renascimento civilizacional, em que os direitos individuais, a liberdade do desejo e o respeito pelas suas manifestações deveriam estar absolutamente garantidos. Até porque, como diz a música, "we're after the same rainbow's end". Se isto tudo não bastasse para fazer desta uma das propostas mais importantes da televisão actual, podia ainda falar-se do elenco. Mas também pouco há a dizer, basta apresentá-lo: Al Pacino, Meryl Streep, Emma Thompson, Justin Kirk, Ben Shenkman e Mary-Louise Parker.


Luísa Marinho