15.9.04

Umbigo #78


Ilustração de Darren Booth.

PERDI A LATA

Eu sonhava já de algum tempo a esta parte artilhar aqui, pelo menos, um texto inusitado: um texto perfeitamente sem pés nem cabeça - em estilo Boris Vian - que lançasse os meus habituais e dizem-me que fiéis catorze leitores em convulsões. De alguma admiração? Talvez... Mas de estranheza isso concertezinha, de gáudio um pouco ternurento, de olhar remansoso cá para o manguelas. De sorriso afável, assim como se me dessem pancadinhas amigas na carola. Vocês percebem.
Um texto galhardamente despropositado, sem sombra de lógica (com uma lógica muito própria). Neste género, por exemplo: "O jovial apaniguado, o alegre subordinado, para nos fazer o rente das coisas jurídico militares rapou do caderninho e exarou duas ou três peculiares ordens de marcha." Esquisito, não é? Mas de repente reparo que até nesta frase desconforme, se se estivar de má-fé se pode eventualmente topar uma feraz alusão ao dr. Portas, que está ministro das tropas, ou a qualquer actor do nosso lindo sistema judicial que após umas merecidas férias está de novo em acção. Coisas jurídico militares... Hum, hum! Talvez seja melhor outra articulação. Mais ou menos isto: "Eis o grão rombóide! No seu estilo transilvano seduzia os papos de anjo como se tivesse minhocas na decisão operacional." Frase esquizofrénica e, claro, levemente surreal. No entanto... No entanto talvez não dê resultado. Papos de anjo... transilvano sedutor... Logo alguém maldosamente tentaria incutir a ideia de que eu estava a aludir malandrecamente ao nosso premier, que não é decerto grão rombóide e muito menos tem minhocas nas decisões que perpetra.
Isto das palavras, das frases por extenso, quando se oficia num lugar suspeito - refiro-me cá ao blogue, assumidamente - e se têm algumas famas de esfrangalhador, ficam muito desoportunas, adquirem brilhos e contornos que nos põem de pé atrás. Ficam atrozmente desconfiáveis.
Para além disto, que já é inquietante, a verdade é que estou a perder o à-vontade natural que me exornava a personalidade. Ando um pouco deprimido. Não me tenho sentido muito bem por coisas e loisas safardanas - e isto não é uma espécie de indirecta para qualquer fazedor do nosso quotidiano financeiro, um desses competentes raspadores do erário que nos atrofiam as horas e a carteira.
Tenham lá paciência comigo. Mediante uns ansiolíticos tudo se irá recompondo. E, se a realidade social e política me ajudar, ainda erguerei por aqui alguns textinhos perfeitamente sem ponta por onde se lhes pegue. Ou seja, adequados a valer à época.
Esperem-lhe pela pancada...


Nicolau Saião


ADENDA: vale a pena complementar a leitura deste post com o comentário do Zé Povão, na caixa de comentários.