8.9.04

Post Scriptum #351



JOSÉ RÉGIO, COMO PROPOSTA E EXEMPLO.

Foi verdade, sim... Ou seja, sucedeu mesmo e não por motivo de mais nada senão do vento - o vento que sopra na Gardunha e que, por obra e graça de gente operosa e imaginativa, soprou um pouco até mais longe. Até aqui, ao Alentejo.
Refiro-me a eu ter ido dias atrás, com outros confrades, até Castelo Novo a perpetrar declamação de poemaria, baseado no facto de estar arrolado na Antologia sobre o Vento e terem tido a deferência de me requisitar... Na ocasião, li a "Toada de Portalegre". E, aos mais afoitos, aproveitei para oferecer o texto que aqui vos deixo, com o descaramento assumido de quem tem pelo autor vilacondense um certo amor, uma certa preferência interior.
E faz, creio eu, tanto sentido recordá-lo nestes tempos inóspitos!


Friedrich Holderlin, o grande poeta alemão cujo fado penoso o fez mergulhar nas brumas do espírito cerca de quarenta anos, disse num dos seus poemas "Quem pensou o mais fundo ama o mais vivo". Esta frase pode aplicar-se, com inteira propriedade, a Régio e à sua obra.
Com efeito, toda a escrita do autor de "Davam grandes passeios aos domingos" é uma intensa celebração da vida ainda que por intermédio, até, de ritmos que apontariam para a nostalgia das moradas celestes. Os grandes autores, os autores nobres na completa acepção da palavra, é sempre para a vida e os seus prestígios, maiores ou menores, que norteiam o seu verbo, os seus amores e desamores, a íntima razão iluminada que os venha a salvar e permita também aos que os leiam a travessia de tempos ou lugares onde a ignomínia permanece ou tenta permanecer.
Basta ler os seus poemas, mesmo aqueles onde brilha a tristeza ou a dúvida, a sua prosa crítica, os seus romances e novelas, o seu teatro, para entender isto: em Régio, nenhuma ponta de cinismo ou de futilidade, de inflexões espúrias filhas das modas de arrabalde ou de megalópole vêm empanar o fulgor tanto do seu pensamento como do seu lirismo. Aquilo que articulou, com maior ou menor trajecto, tem sempre o selo da autenticidade, mesmo autocrítica, da fruição vital, mesmo dolorida - essa chancela vigorosa e certeira que possibilita às obras e aos homens que resistam ao decair dos anos e à erosão das épocas.
O desespero, por vezes, visitava-o e eis que lhe respondia - com o pundonor de Poeta - com a "Toada de Portalegre". Era a dor de ter perdido alguém que o pungia - e eis as páginas vibrantes de drama e de força poética de "A velha casa", onde se sente perpassar o vulto, discreto mas significativo, como nas maiores dores, de uma filha rememorada. Perturba-o o acordo/desacordo entre ele e Deus, entre ele e o símbolo do Homem encarnado e terreno cuja origem é de matriz divina? Eis os poemas que dessa luta resultam, sejam os de "Filho do Homem" como os outros onde se debateu com a grande equação metafísica.
"Quem pensou o mais fundo ama o mais vivo"... Sem dúvida e o infausto Holderlin, filho das musas e das parcas viu longe e alto. E repare-se que José Régio, mesmo tentado pela corda dos desesperados, jamais cedeu - mesmo apenas conceptualmente - ao abandono da cena. Digno, perscrutador, atento, de escrita vigiada e sem os arroubos fáceis de gente menor, sorveu até ao fim, "no gosto de mais um dia" a existência salubre dos criadores verdadeiros.

Nicolau Saião