5.7.04

Sophia por Herberto

Já se disse quase tudo a propósito do desaparecimento de Sophia. E, neste blogue, a evocação feita por João Luís Barreto Guimarães não podia ter sido mais lapidar. Em todo o caso, creio que vale a pena recuperar um extraordinário texto de Herberto Helder, ainda inédito na internet, publicado em 2001, na revista "Relâmpago" (nº 9, 10/ 2001), e que é dedicado à autora de "Geografias". Eis os principais momentos.


PARADISO, UM POUCO

(...) Agora em Coimbra, inferninho de merda. E eu: uma cerveja no inferno! E lá ia até às putas, ao Terreiro da Erva. Ou até aos parques e jardins. E nos belos parques e jardins punha-me a devorar os grandes livros da poesia. Li ou reli todos os autores portugueses legíveis. Que grande poesia tinha para ler entre os vivos de então? Só me lembro do Nemésio.
(...) Quanto ao idioma pátrio, julgava eu que tudo estava dito. E o dito em pátrio, tinha de aquilatá-lo pelo que já lera de outras terras outras gentes, milagres como Le Spleen de Paris, Rimbaud, Michaux, um pouco de Artaud, o Hölderlin e o Rilke via Quintela, alguma língua inglesa de Pound e Eliot, e os não muito amados por outros mas por mim amadíssimos poemas de D. H. Lawrence, e Espanha 25, e Brasil de Drummond e da Invenção de Orfeu. (...) Confusões na cabeça? Nenhumas. Eu lera, criara os meus campos electromagnéticos, tinha o dom de ser percorrido por calafrios na espinha. Os poemas verdadeiros encontravam-me. (...) E eis que de uma única vez arranjo tudo de Sophia. (...) É da prateleira dos livros medonhos que fazem estremecer? A conversa era outra, nada sulfurosa, nada fáustica, conversa de soberana gravidade. Que tinha ela na altura, a Sophia?
(...) A Sophia desse tempo não dispõe ainda das V Artes poéticas, os volumes são Poesia, Dia do Mar e Coral, onde subterraneamente se desenvolvem impulsos obscuros, monstruosos, o caos, cá-óss, silvaria o padre Manuel Antunes, S.J. (...) Era de certa nostalgia grega, mais tarde foi visto as gentes atacadas pela nostalgia grega, queriam aportar à Grécia, queriam-no todos, mesmo turisticamente, ilhas, cabeças de deuses, torsos arcaicos, luzes e linhas solares, enfim a apoteose apolínea. A ciência e inteligência de Sophia foi praticar - como Akhmátova e Mandelstam, ditos acmeístas (o ponto mais alto, pureza, perfeição) - uma arte que fornecesse, contendo em si a intensidade e o tremor instintivos, mas elidido o sujeito, a referência literal. Em registo estrito e imediato exemplifica-se a dignidade do mundo.
(...) Não, não sucedia assim à época dos parques e terreiros, a época dos três primeiros livros, mas, um pouco afastadamente, via-se já para onde se dirigia aquela voz levantada no pequeno inferno onde eu circulava, apertado pela ruralidade das mentes estudantes, praxes, capas negras, la merdre.
(...) Quando ela pôde escrever que os poemas eram (...) o nome deste mundo dito por ele próprio, chegou ao termo, ficou completa, e escutou-se então, e eu escutei já noutro sítio, noutro inferno qualquer a voz clara: A voz sobe os últimos degraus / Oiço a palavra alada impessoal / que reconheço por não ser já minha. (...) Fala-se de quê? Da visão religiosa, etymologico sensu, da "realidade" ou, se se quiser, e é indispensável que se queira, da mais urgente quimera que fundamenta a poesia.
(...) Sophia foi um dos exemplos maiores que me ajudaram a sobreviver no inferno da tóxica, da mortífera província cultural e humana, década de 50, começos, 51, 52, à volta só parvoeira, impraticabilidade, prosa. Imagine-se: escapei intacto! Fica assente a quem o devo. Também a ela, sim, ela que, desde o princípio, mostrou que as coisas têm (...) uma alma virgem e que através de todas as presenças caminhava para a unidade. Selah.

Herberto Helder

1 Comments:

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9:51 da tarde  

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