23.7.04

Post Scriptum #309

POR QUEM OS SINOS DOBRAM

A princípio, pode dizer-se, nem ligou. Mais exactamente, nem sequer reparou.
Era um telelé educado, um profissional. De pequena estatura mas competente, fazendo o seu trabalho com aplicação, nem era bisbilhoteiro nem se metia na vida dos outros como alguns dos seus colegas. Discreto, um pouco tímido até, portava-se como um telelé honrado. Quem vai vai e quem está está era o seu lema de vida. O resto era com a central, onde às vezes se passavam cenas que... Mas cala-te, boca - não andava cá p'ra isso.
Ouviu a primeira conversa, ouviu a segunda...e qualquer coisa dentro se lhe pôs a abanar. Não era conversa entre políticos tratando de nefandas acções, não eram argentários tramando situações obscuras, não eram mesmo aficcionados falando de golos, de penalties, de foras de jogo, de espúrias combinações...
Não havia que enganar: era conversa de amores!
O telelé não tinha preconceitos. Muito ligado ao mundo, era tipo para aparar qualquer jogada. Dava para sentir tremeliques? Não dava, mas ele - quase sem querer - pôs o microfone atento, quase venerador e desbloqueado. Hum, hum!
Sentiu um certo baque, com mil diabos. Eles falavam sem cálculos, sem habilidadezinhas, sem matreirice. Com malandrice, é verdade, mas sentia-se nas ondas do seu éter uma inocência, uma naturalidade - quase uma inabilidade - que o telelé, aparelho de cu pelado, no entanto se comoveu: exprimiam-se mutuamente devoção, que não podiam passar um sem o outro, que eram o ar que respiravam, que preferiam morrer a não se terem, que por nada trocariam o seu amor. A conversa tátátá sempre igual e sempre diferente, mas...
Havia ali qualquer coisa que não era habitual. O telelé sentiu essa qualquer coisa entrar-lhe no coração da bateria. A sua frieza de máquina abalava-se irreparavelmente.
Curvou-se levemente, piscando com ternura postal. Uma nostalgia muito funda e fina lhe passava pelos circuitos. Lembrou-se com emoção, deixando o cinismo electrónico, da juventude feliz passada numa loja de electrodomésticos, quando ainda acreditava nos postes retransmissores e deitava a mirada a uma torradeira.
O seu apitado suspiro foi mesmo de emoção.
Depois - discreto, respeitoso, com um pouco de mercúrio ao canto do écran, foi-se abaixo, desligou-se mansamente e parou para sempre. Era um utensílio pundonoroso e já tinha a sua conta.
É que há coisas de tal modo privadas, perturbadoras e íntimas que nem um telelé pessoal se sente à-vontade para ter o direito de devassar...


Nicolau Saião