16.7.04

Post Scriptum # 302



COMO UM TAMBOR AO LONGE

Bate e palpita e não é um mar nem um tropel de pernas e braços que sobre um relvado arfa e se descompõe. Nem a revoada de palmas numa sala comicieira de gândulos esfaimados por prebendas, por coisas de muito mandar. Bate: quente, arfante, solitário, nítido como uma voz que reboa na manhã em que ainda se sente o sussurro da madrugada. Bate como um punho numa porta cerrada e depois aberta para o afago, o grito, o absoluto permanecer. Não é um bater de espingarda que se dispara, de aparelho (um piano, um frigorífico, uma mala enorme) que tomba num chão e faz um estardalhaço infernal. Nem um tum tum tum de maquineta enlouquecida.
No calor e no frio das terras e dos tempos, no afastado de salas e de quartos onde os mistérios se interpenetram como corpos de amantes, como corpos de amantes que ao mistério se dão, como um balão que rebenta mas de mansinho, na noite de muito possuir e na manhã de magia, ele efectua o seu ruído difuso, único, solar.
É um pássaro, um super-homem, uma nave que ultrapassa a barreira do som com um estampido?
Ou é soco violento numa mesa, muitos socos violentos sobre uma mesa, um rosto, uma situação?
Não é nem ronronar de máquina de navio, nem grasnar rouco de motor de avião, nem estrépito de cavalos no empedrado de uma calçada antiga.
Com efeito, esse toque toque toque, esse pulsar incógnito mas reconhecível, humilde mas fragoroso no interior do seu silêncio, reboante nas horas de que não há nem notícias nem mapas, esse pequeno ruído como o de um tambor ao longe é apenas, tão-só, simplesmente - o de um humano e apaixonado coração.


Nicolau Saião