8.7.04

Ilha dos Amores #64



DESCULPA, MARLON!

Apanhaste-me de surpresa. Assim como quem não quer a coisa, pregaste-me uma rasteira. Foste-te embora precisamente na altura em que eu não te podia prestar atenção, na morte, como te prestara atenção em vida. Precisamente na altura em que eu estava imerso numa maratona de que só te falarei quando, por naturalidades da inexistência, me encontrar contigo de novo à esquina do Paraíso. Ou à esquina do outro sítio, que tanto tu como eu, nos nossos bons tempos, tínhamos sangue na guelra e não éramos bons de assoar. Tu um pouco mais do que eu, que sempre fui mais cordato. Não tinha lá aquelas tuas apoquentações que te faziam ficar com voz de tenor arrepiado e sobrolhos de cortar à faca.
Lembras-te, Marlon? Aquilo é que eram serões lá no Cine-Parque portalegrense, onde eu - bastante mais novo que tu - entabulava contigo diálogos a uma voz que nos deixavam encantados. Eu dum lado do écran, tu do outro, entendíamo-nos às mil maravilhas: tu levavas porrada duns mafiosos da estiva e eu, solidário, dava homem por ti a cem por cento. Engalinhavas-te por uma pequena que te fascinara no teu blusão de cabedal? E eu dava-te conselhos úteis para o namorico, quando não eras tu que mos davas a mim. E estive a teu lado na Bounty, a cumprir contra a fera autoritária. E, mais chegadamente, num pueblo da Califórnia a ajudar-te a tratar da saúde a um amigo-da-onça que te atraiçoara e a quem visitámos cinco anos depois. Para não falar em tantas e tantas ocasiões de traquejo em comum.
E deixei-te só à beira de morrer! Soube da tua morte assim rés-vés campo de Ourique, como que acreditando pouco, porque há maratonas que falam mais alto e mais claro e, como tu sabes, há coisas que um homem não pode - não pode nem quer! - deixar de fazer.
Mas tu vais perdoar o teu companheiro de tanta aventura. Vais entender a situação. E crê que me vou lembrar de ti mesmo gordalhão, mesmo desactivado, mesmo já sentadinho e sem veleidades a tocar harpa ao pé do Quinn, do Peck, do Lancaster. Ou seja, a tal bela malta da nossa confraria de antanho.
Cheer up, Marlon!


Nicolau Saião