26.4.04

O Povo é Sereno # 85

NOVAS CENSURAS

Nas comemorações do 30º. aniversário do 25 de Abril de 1974 tem sido tema corrente o relato de alguns métodos utilizados pela censura exercida durante os quarenta e oito anos de ditadura. Poucos têm falado, no entanto, sobre as novas censuras que, de forma discreta e quase sempre hipócrita, se vão exercendo hoje em dia por esse país fora – nomeadamente em alguma comunicação social sem escrúpulos, geralmente ao serviço de interesses obscuros ou nas mãos de notáveis sacripantas, movidos pelo desejo de instalação do deserto à sua volta (para que a sua mediocridade surja como simulacro de qualidade) ou por ódios, geralmente nascidos da inveja.
Para a concretização desta censura são geralmente invocadas leituras distorcidas da Lei – como por exemplo os “critérios jornalísticos”, a “liberdade do director” ou a “ausência de obrigatoriedade de publicação de textos não solicitados” –, permitidas pela própria legislação, (propositadamente?) ambígua, e por alguns membros da autoridade reguladora, venais ou apenas míopes. E assim se vai decretando, ou tentando decretar, a morte cívica de muitos cidadãos conscientes, impedidos por diversos meios de expressarem as suas opiniões fundamentadas.
Posso contar-vos dois exemplos, de que tive conhecimento directo:
Um jornal relatou nas suas páginas uma sessão artística em que haviam participado dois poetas, uma declamadora e uma pianista. Ao jornalista presente ao longo da sessão haviam sido fornecidos todos os elementos sobre o acontecimento e sobre a totalidade dos intervenientes. A notícia saiu no entanto profundamente deturpada, sendo notório na reportagem o “desaparecimento” dos dois escritores, certamente na sequência da campanha de difamação de que estava a ser alvo um deles nesse mesmo jornal. Apresentada queixa à Alta Autoridade para a Comunicação Social, não foi concedido aos poetas eliminados na notícia o direito de reporem a verdade dos factos, a pretexto de que “não haviam sido referidos na notícia” e de que o director do jornal era livre de pôr em prática os critérios que muito bem entendesse (sic!). De nada valeram os protestos dos queixosos – provando, entre outras coisas, que a informação veiculada pelo jornal havia sido deliberadamente deturpada. Tudo ficou, como é costume, em águas de bacalhau…
Noutro periódico a equipa directiva recém-empossada teve como primeira medida eliminar da ficha técnica do jornal a lista de colaboradores, alguns com mais de trinta anos de colaboração. Ao mesmo tempo, passou a publicar em caixa bem visível o aviso: “Não nos responsabilizamos pela publicação de colaboração não solicitada”. Foi meio caminho andado para a censura. A partir desse momento as opiniões de um grupo de personalidades passaram a ser eliminadas e, logo, nunca reproduzidas – personalidades essas que, até esse momento, eram colaboradores expressos do jornal, não tendo recebido qualquer comunicação emanada da nova equipa directiva dispensando a sua participação, aliás gratuita.
Deste modo e de outros modos se vai fazendo a actual censura. Discreta, subreptícia, com um lápis sem cor, mas igualmente manipuladora da verdade e dos mais elementares direitos de cidadania, consignados na Constituição da República.
De olhos fechados, Portugal avança. Ou porque não vê. Ou porque não deseja ver. Às vítimas restam a angústia e uma mal calada revolta. Sentimentos a que se mistura a consciência de que este país vai sendo minado por um “fascismo social”, expressão atribuída por alguns sociólogos à vivência cívica hoje existente neste rectângulo ibérico, onde a democracia vai sofrendo uma perigosa erosão, transformando-a a pouco e pouco numa mera formalidade.


Ruy Ventura