12.4.04

O Povo é Sereno # 77

Vi recentemente em algumas estradas um grande cartaz indagando: “E se o Senhor Jesus chegasse agora?”. A gente passa, vê, fica intrigado ou acha graça e vai em frente. Mas, parei para pensar. Eis aí uma provocante questão. E pus-me a imaginar situações dessa segunda vinda de Cristo, que tanto inquieta certas seitas e mentes. (…) Se reaparecesse, por exemplo, em Israel ou em qualquer daquelas terras da antiga Palestina por onde mansamente pregou, ia ficar estarrecido. No lugar onde nasceu e onde pregou é onde há mais ódio fratricida. Seria difícil se movimentar entre tantas armas e bombas estilhaçando vidas. Estaria sendo vigiado de helicóptero e em certos territórios não poderia entrar, nem por milagre.

Se resolvesse subir a montanha e fazer um novo sermão, iam logo lhe dizer: — Olha, Mestre, não é por aí. Vamos para uma estação de televisão, lá o Senhor fala via satélite para todo o mundo.

Iam, é claro, dizer que precisava de assessor de imprensa, de relações públicas, de “promoter”, que doze apóstolos usando apenas o gogó não ia funcionar mais. (…)

Ao ver que ele se aproximava descendo das nuvens, uma repórter começaria: “Estamos aqui presenciando a chegada do Senhor Jesus, nascido em Belém, que veio especialmente para ver como vão as coisas neste mundo de Deus. Ele está se aproximando de nossas câmaras, então vamos aproveitar e lhe perguntar: ‘Cristo, faz favor, diga aqui aos nossos telespectadores quais são as suas primeiras impressões nessa sua segunda vinda?’”.

É quase certo que uma marca de cerveja tentasse contratá-lo para que demonstrasse como se transforma água em cerveja e cerveja em água. E já que ele é uma celebridade (…), se facilitasse ia acabar na Ilha de Caras. (…) E tanto Bush quanto Kerry insistiriam para aparecer ao seu lado na convenção de seus partidos. (…)

Depois de ir daqui para ali, indagar, opinar, participar às vezes mansamente, outras vezes iradamente, como quem expulsa os vendilhões do templo, começariam as intrigas, as fofocas e, não tenham dúvida, seria traído.

Traído por aqueles que dizem segui-lo e, no entanto, matam e trucidam populações de inocentes, iria, enfim, para julgamento sumário. E depois de apanhar como se apanha desses pitboys nas portas das boates, seria executado nos subúrbios de nossa indiferença e os jornais ainda seriam capazes de dizer: “Foi encontrado morto ontem, numa vala, o corpo de um indivíduo que insistia ser Jesus Cristo. Seus parentes e vizinhos disseram que sempre temeram que fosse esse seu fim, pois tinha umas idéias muito estranhas e vivia falando coisas que ninguém nunca levou a sério”.


Affonso Romano de Sant'anna, esta semana no Prosa & Verso (acessível após registo).