22.3.04

Umbigo #13

Quem me conhece já sabe com o que conta. Sou viciado em livrarias. Desde os alfarrabistas de rua e de vão de escada aos espaços existentes nas grandes superfícies e nos centros comerciais, só a muito custo consigo resistir à tentação dessa espécie de namoro, às vezes concretizado em casamento para toda a vida. A sedução exercida pelos livros é fortíssima. Nem que se trate de um livro amarelecido e meio rasgado existente numa obscura tabacaria de província. Já nos meus tempos de adolescente era assim: chegava a prescindir da bica e de outros prazeres para que o dinheiro da semanada chegasse para adquirir esta ou aquela pechincha existente na, felizmente desorganizada, livraria da minha terra. Quantos dias luminosos guardo na minha memória, luminosos exactamente porque olhei no momento certo para aquela montra ou para aquela prateleira, mesmo a tempo de resgatar do esquecimento este ou aquele volume que há tanto tempo procurava… Foi nestes momentos de plena alegria que me vieram às mãos tomos de Pascoaes, de Marcel Scipion, de Balzac, de Adélia Prado, Irene Lisboa, Stefan Zweig ou Jack London, e de muitos outros amigos que (assim espero) me acompanharão em toda a minha existência.
Por estes e por outros motivos sou um frequentador habitual das diversas lojas FNAC existentes no nosso país. A do Colombo, em Benfica, a da Rua de Santa Catarina, no Porto – são apenas algumas que costumo visitar sempre que o tempo me dá essa oportunidade. Tenho no entanto especial predilecção pela que hoje se instala nos Armazéns do Chiado. Ao intenso sabor dos livros, junta-se o forte odor da paisagem, sempre que o olhar se espraia para nascente e avista o casario de Lisboa a subir para o castelo de S. Jorge, sempre que a vista alcança, junto das torres da sé, uma nesga de Tejo atravessada por navios e cacilheiros.
Os encontros costumam ser demorados. Como afirmam aqueles que às vezes me acompanham, começam geralmente por uma espécie de bailado em torno das estantes (de poesia, portuguesa e estrangeira, de arte, de romance, de ensaio…), repetido as vezes necessárias até seduzir a obra que se deixará levar para bem longe dali, talvez para as serranias da Serra de São Mamede ou para as proximidades da Arrábida, que agora habito.
Tudo isto para vos contar a mais breve visita. Dia 8 de Março. À tarde. Ao descer a Rua Garrett tive logo uma sensação estranha. O movimento dos carros de luxo incomodou-me (a mim, que apenas conduzo “pandeiretas” – vulgo, utilitários -, como me disse há pouco tempo uma nova rica de província…). A este aliava-se a pedestre passeata de antigos ministros e governadores, aperaltados em fatos cinza, como convém, ou azul ferrete, para variar. Entrei na FNAC Chiado e o aparato de uma estação televisiva assustou-me. Ainda assim entrei e desci até aos territórios da poesia, pensando que se trataria apenas da passagem pela capital de algum magnata do petróleo ou da comunicação social, a que essa gente iria prestar tributo. Ouvi então uma frase inquietante, trocada entre dois rapazes com ar partidário: “Vais ver, pá… Ao lançar o segundo volume da sua autobiografia política, o homem vai é fazer-se candidato a presidente… É desta que vai ser tudo nosso!” Percebi a razão de todo o movimento. Sem mais delongas, fugi desse lugar que tanto aprecio, não fosse o demo tecê-las. Foi, de facto, uma visita brevíssima…
Em frente à Basílica dos Mártires fui abordado por uma jornalista, certamente estagiária: “Então, comprou o livro do professor?” Respondi sem demora: “Ó minha senhora, gosto muito de ler romances, bons romances, mesmo que sejam de figuras desconhecidas. Mas, sinceramente, ficção política não me agrada. Costuma dar-me azia…” Voltei para trás e entrei na Bertrand. Cesare Pavese esperava-me. Sem demora, comprei o seu “Ofício de Viver”… e consolei-me com boa literatura.


Ruy Ventura