23.3.04

Post Scriptum # 180

- Estou-me nas tintas para o teu poema! - gritou o homem baixo atarracado que nunca suportara versos.
Levantaram-se vozes contra ele:
- Por favor, cale-se!
- Senta-te, cretino embriagado! Se não percebes nada disso, deixa o pobre diabo ao menos ganhar umas coroas!
- Perdão! Perdão, senhores! - gritou um homem franzino, de cabelo comprido e cuidadosamente penteado. - Perdão, há aqui um mal entendido. Não se trata de ganhar dinheiro. O nosso amigo não se encontra em má situação. Não vos exige nada, pelo contrário: só tem o desejo de nos proporcionar um prazer. É o nosso primeiro poeta cósmico.
- Basta, basta! Por amor de Deus! Todos sabemos que és farmacêutico, mas o que é demais, é demais!
- Deixem falar o poeta!
- Que diabo, quem foi que nos trouxe hoje essa corja de poetas para nos estragar a festa?
Seguiu-se uma gargalhada geral. Mas o homem franzino, de cabelo comprido, o tal farmacêutico, não se deixou intimidar. Levantou-se e gritou com quanta força tinha:
- Meus senhores, peço-lhes que não ofendam a poesia! Os poetas são criaturas superiores, devemos respeitá-los!
- O quê? - gritou o homem baixo e correu, de braços abertos, à volta da mesa. - Respeitá-los porquê? A mim ninguém me mete respeito. Nem Deus todo-o-poderoso! Percebes? E o teu maluquinho não me interessa. Compreendes a língua sérvia, não compreendes? Pois não quero ouvir poemas, e basta!

Ivo Andric, A Velha Menina, trad. Ilse Losa e Manuela Delgado, Livros do Brasil, 2003.

Continua aqui.