Post Scriptum #176
NUNO GUIMARÃES E CRISTOVAM PAVIA
No dia 13 de Outubro de 2003 passaram trinta e cinco anos sobre o falecimento do Cristovam Pavia. No mesmo ano que há dois meses e pouco terminou cumpriram-se também os trinta anos sobre a morte (física) de Nuno Guimarães. Dois poetas, discretos, cuja palavra solidificou (e solidifica, ainda hoje) essa luta contra a entropia que todos procuramos realizar sempre que nos aproximamos da Poesia como ponto de partida para uma iluminação interior. A data passou – sem que fosse recordada publicamente. Preocupada sobretudo com a promoção de génios diminutos, de veículos do vómito urbano e de outros simulacros textuais, a “imprensa literária” esqueceu o verbo profundo destes dois poetas. Não me deixo surpreender. Nuno Guimarães e Cristovam Pavia pertencem àquele grupo de autores que permanecerão no tempo, mas sempre no interior da sua casa, uma habitação peculiar onde serão lidos não pelos olhos de quem procura a fama, mas pelos olhos de quem demanda a beleza de uma raridade – luminosa porque inacabada, como escreve Fernando Pessoa nesse seu Heróstrato, livro muito perigoso para os tempos que correm e, por isto, tão pouco citado.
Nunca atingiram em vida a notoriedade pública, e ainda bem, uma vez que esta se opõe à permanência no tempo, segundo Pessoa. Hoje em dia a ocultação a que certa gente os votou parece-me no entanto injusta, embora compreensível, tendo em conta a lista de autores de costumam pôr nos píncaros. (Se alguém duvida, basta lembrar que há mais de vinte anos que os poemas de Pavia não são reeditados. Quanto a Nuno Guimarães, ainda há pouco tempo me confrontei com o olhar estupefacto – e ignorante – de uma catedrática de Literatura Portuguesa quando mencionei o seu nome e os seus poemas.) Fundamentais, Nuno e Cristovam continuam subterrâneos ao caminharem por uma estrada invisível onde vão recebendo apenas a visita de leitores fiéis, que desejam encontram não folhas mortas e passageiras mas as raízes das árvores que crescem com o tempo, contra o tempo e o seu devir. Não são autores esquecidos, apenas discretos – discretos como a luz intensa que ilumina certas cavernas.
Se me fosse concedida a oportunidade de escolher a minha família poética, escolheria a companhia destes dois confrades, e a de muitos outros autores que ocupam a mesma posição por esse mundo fora (C. Ronald, por exemplo, um dos maiores poetas vivos da nossa língua, residente no Brasil e pouco mais do que desconhecido, até no seu país).
Procuro, como a maior parte desses “mastigadores do mundo” (a expressão é de Cristovam Pavia), transmitir aos que me lêem o sabor (doce ou amargo) do húmus que vou descobrindo nas palavras e com as palavras. Não tenho, porém, ilusões. Sou sobretudo um leitor – leitor de tudo quanto me rodeia, tangível ou inefável, real ou virtual (como agora se diz), desejando encontrar pontes e viadutos que permitam ao Homem prosseguir sempre essa corrida de estafetas em que todos participamos.
Há muito de morte em tudo quanto tenho escrito. Mas, como diz Edward Burton, “deixar não é somente perder”. Deixar é também permitir, criar nas palavras um mundo reconstruído, um domínio de saudade (mesmo que se trate de saudade da inexistência), a saudade-memória serena de quem encontra um novo cimento com que pode preencher os pilares da casa que todos os dias edifica dentro do corpo e do espírito que lhe pertencem.
No final da sessão onde este texto foi lido [sessão de lançamento do livro de poemas "Assim se deixa uma casa”, ocorrida em 8/3/2004, em Lisboa] tive a feliz notícia de que os poemas de Cristovam Pavia vão ser reeditados brevemente. Mais vale tarde do que nunca... Quanto à obra poética de Nuno Guimarães, ela está disponível nas edições Afrontamento. São, ainda assim, dois poetas obscurecidos neste tempo onde a inanidade é uma espécie infestante.
Ruy Ventura
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