16.3.04

Post Scriptum #173

Rubrica “Não Quebrem Esta Corrente”

Num post recente, Alexandra Barreto citava o interessante poema “Lazarus not Raised” de Thom Gunn (Inglaterra, n. 1929), a propósito de um dia que “começou relativamente mal”, tendo sido seguida por Paulinho Assunção, que também o citou a propósito do post da Alexandra. Hoje associamo-nos a esta corrente e publicamos a tradução que Maria de Lourdes Guimarães fez desse poema, em 1993, a propósito daqueles posts e, portanto, sem nenhum propósito em especial a não ser o de gostarmos todos de poesia.


LÁZARO NÃO RESSUSCITADO

Estava na mesma. Os seus amigos em redor do túmulo
Fitavam o seu rosto gorduroso e sereno,
Flutuando na sombra; nada poderia salvar
Agora o seu corpo das areias sob as suas ondas,
Não tendo acontecido o milagre previsto.

Jazia inerte sob aquelas mãos estendidas
Que o chamavam à vida. Embora o esquife
Estivesse pronto para agarrar a vida e as faixas enroladas
Ao seu primeiro movimento soltassem as glândulas geladas,
O milagre previsto não aconteceu.

Ó Lázaro, corpo distendido, assim posto
Resplandecente e sem peso sobre a superfície da morte,
Ergue-te agora, antes de te afundares, porque não ousamos descer
A esse triste pântano onde (gritaram os que te choravam)
O milagre previsto não pode acontecer.

Quando pela primeira vez despertou, e lhe foram dados
Pensamentos e alento, escolheu deambular a passos vagarosos
Nos campos da infância, imaginários e seguros
- Semelhantes ao trivial território da morte
(O milagre não tinha ainda acontecido).

Escolheu primeiro entregar-se assim aos pensamentos
E desprezar o que o seduzia na graça oferecida,
E depois, em repouso, escolheu entregar-se ao que deles restava.
Chegou o esforço final, empurrámo-nos
Para ver o planeado milagre acontecer:

Inesperadamente o cadáver pestanejou e abanou a cabeça
Para a seguir se afundar de novo, deslizando da vista sem deixar
Um único vestígio, até alcançar o lodo sobre o mais profundo leito
Do vazio. Escolhera permanecer morto,
O milagre previsto não aconteceu.

Nada mais mudou. Vi alguém perscrutar,
Inclinando-se para a caixa rectangular do espaço.
Os seus amigos tudo tinham feito: sem tal receio,
Sem aquele aterrado resplendor do despertar,
O milagre previsto teria acontecido.


Thom Gunn, A Destruição do Nada e Outros Poemas, trad. de Maria de Lourdes Guimarães, Relógio D’Água, 1993.