8.3.04

Post Scriptum #166

E ainda a propósito da arte de traduzir poesia, o Ruy Ventura ofereceu-nos este texto.

Traduzir um poema é escrever um poema novo?

Posiciono-me perante a tradução de poesia na qualidade de leitor e nunca como tradutor profissional que viaja permanentemente entre duas línguas. Interessam-me sobretudo as emoções e as experiências que recebo de uma construção poética. Há alguns anos que venho vivendo a comoção de um viajante que vai chegando a uma infinidade de mundos novos sempre que abre um bom livro de poemas. Hoje como ontem, vou seguindo por um caminho de amor em direcção às palavras – fazendo, quando é necessário, o transporte material para levar ao outro lado da fronteira linguística um pouco de maravilha, de pensamento, de angústia ou de reflexão.
Quando observamos o mundo interior e exterior que rodeia o nosso corpo, quando escrevemos o calor e o encanto, o horror e o desespero que esse mundo cria em nós, quando tentamos transpor para outra língua um poema que nos comoveu, nada mais fazemos do que uma leitura múltipla e irrepetível. Decompomos e recompomos o universo peculiar que nos rodeia, para criar neste mundo onde temos que habitar um pouco de beleza, ainda que estranha, dionisíaca e nocturna, difícil de compreender e de integrar nos alicerces da casa que habitamos.
Traduzir um poema é escrever um poema novo? Não sei responder a esta pergunta. Ninguém saberá talvez responder. É difícil raciocinar quando o objecto sobre o qual nos debruçamos foge de nós como areia entre as mãos.
Vladimir Nabokov, escritor bilingue que, como Fernando Pessoa, conheceu na vida o trabalho cimeiro da leitura – a tradução permanente –, indica num texto seu que somente a tradução literal é genuína, uma vez que apenas ela transmite rigorosamente o significado contextual do original. Desta forma, o leitor que traduz um poema apenas consegue fazê-lo quando procura uma fidelidade crescente que deseja completa. Caminha ao encontro de outra entidade: uma entidade dupla, corporal e verbal, que recebe no seu coração e tenta transmitir ao mundo com a máxima integridade. O tradutor despersonaliza-se. O tradutor sofre uma lenta mutação das suas células, a metamorfose do seu corpo total – ao realizar uma viagem total para que chegue sem mancha ao outro o objecto que guarda nas suas mãos. Para procurar comover o leitor do texto traduzido, como supõe que o poema original terá comovido os seus leitores ou os contemporâneos de sua criação, ou como emocionou o leitor que traduz.
Será isto possível? As dúvidas permanecem no pensamento. Tenho sempre na memória a certeza de que todas as palavras têm cinco sentidos e algumas contêm mesmo o infinito, como refere o Zohar. Quem poderá garantir que uma tradução é fiel ao original? É tão difícil quanto dizer com segurança que a leitura literária de um poema é fiel ao pensamento de quem o escreveu. O verbo poético engana, mente para criar uma verdade em cada leitor, uma verdade provisória e mutável. Noutra língua, o poema original é apenas um simulacro. O corpo pode ter a mesma estrutura, uma pele semelhante, mas os olhos e o cabelo têm já uma cor e um odor diferentes, os órgãos vitais trabalham de forma distinta, a melodia que produz modificou-se de forma inexorável.
Tudo se passa, suponho, como na literatura oral e tradicional, onde um texto original vai criando múltiplas versões, árvores diferentes que crescem da mesma raiz. Não creio que um poema bem traduzido seja um poema novo, separado do original. Tenho a convicção de que é um simulacro, uma representação desejada mas nunca concluída do objecto original.


Ruy Ventura