Post Scriptum #158
Elytis #6
Ora, fossando na minha arca, tirei cá para fora este trecho do "Axion Estí", outro longo poema de Odysséas Elytis (1911-1996), segundo prémio nobel grego. O "Axion Estí" é um poema monumental, no sentido de que apresenta uma arquitectura que já foi comparada a uma catedral; pelo que só pode ser plenamente apreciado na sua totalidade. O trecho que se segue faz parte de uma série de "leituras" (como que homilias) em prosa que pontuam o texto e é quase, digamos, a explicação do mistério, como que a revelação do criminoso num romance policial.
MUITOS ANOS depois do Pecado a que chamaram Virtude nas igrejas e que bendisseram. Relíquias de velhos astros e recantos cheios de teias de aranha varridas pela borrasca que o espírito dos humanos há-de gerar. E, ao ajustar as contas dos antigos Dirigentes, a Criação estremecerá. E grande alvoroço cairá sobre o Hades e o chão cederá sob a grande pressão do sol. Que começará por reter os seus raios, sinal de que é tempo de os sonhos tirarem desforra. E depois falará, dizendo: Poeta exilado, no teu século, diz, que vês?
- Vejo as nações, antigamente tão arrogantes, abandonadas às vespas e às urtigas.
- Vejo as achas no ar fendendo os bustos dos Imperadores e dos Generais.
- Vejo os mercadores a cobrarem curvados o lucro dos próprios cadáveres.
- Vejo o encadear dos sentidos ocultos.
Muitos anos depois do Pecado a que chamaram Virtude nas igrejas e que bendisseram. Mas antes, eis o que acontecerá aos belos Filipes e Robertos que narcisam pelas esquinas. Trarão os anéis ao contrário, e pentear-se-ão com pregos, e enfeitarão o peito com caveiras para seduzirem a fêmea. E as fêmeas deslumbrar-se-ão e consentirão. Para que a palavra se torne verdade, que próximo é o dia em que o belo será entregue às moscas do Mercado. E indignar-se-á o corpo da prostituta por não ter já que invejar. E a prostituta há-de fazer-se acusadora dos sábios e dos grandes, trazendo como testemunho o esperma que fielmente serviu. E sacudirá de si a maldição, estendendo a mão para Oriente e gritando: Poeta exilado, no teu século, diz, que vês?
- Vejo as cores do Himeto na base sagrada do nosso novo Código Civil.
- Vejo a pequena Mirtó, a prostituta de Síkinos, como estátua de pedra na Ágora, com as Fontes e os Leões.
- Vejo os efebos e vejo as raparigas na Lotaria Anual dos Casais.
- Vejo alto, nos ares, o Erecteu dos Pássaros.
Relíquias de velhos astros e recantos cheios de teias de aranha varridas pela borrasca que o espírito dos humanos há-de gerar. Mas antes, eis que as gerações passarão a charrua sobre a terra estéril. E às ocultas os Dirigentes medirão a sua mercadoria humana, declarando guerras. Com o que se saciarão o Guarda e o Juiz Militar. Abandonando o ouro aos obscuros, para que estes cobrem o salário da soberba e do martírio. E grandes navios içarão bandeiras, as fanfarras invadirão as ruas, as varandas regarão de flores o Vencedor. O qual viverá com o cheiro dos cadáveres. E a boca da fossa a seu lado, a escuridão, abrir-se-á à sua medida, clamando: Poeta exilado, no teu século, diz, que vês?
- Vejo os Juízes Militares arderem como velas na grande mesa da Ressurreição.
- Vejo os Guardas ofertar o seu sangue de sacrifício à pureza dos céus.
- Vejo a revolução permanente das plantas e das flores.
- Vejo as canhoneiras do Amor.
E, ao ajustar as contas dos antigos Dirigentes, a Criação estremecerá. E grande alvoroço cairá sobre o Hades e o chão cederá sob a grande pressão do sol. Mas antes, eis que hão-de gemer os jovens e o seu sangue sem razão envelhecerá. Condenados tosquiados baterão com a gamela nas grades. E esvaziar-se-ão todas as oficinas e logo de novo serão enchidas por requisição para que produzam sonhos aos milhares em latas de conserva e engarrafem a natureza de milhares de formas. E virão anos lívidos e impotentes envoltos em gaze. E cada um terá alguns gramas de felicidade. E as coisas que terá dentro farão já belas ruínas. Então, não tendo outro exílio aonde possa ir lamentar-se, o Poeta, deixando esvaziar-se do seu peito a saúde da borrasca, voltará para ficar nas belas ruínas lá dentro. E a primeira palavra que o último dos homens há-de dizer será para que as ervas se ergam e a mulher a seu lado saia como raio do sol. E de novo adorará a mulher e a deitará na erva como está determinado. E os sonhos tirarão desforra e semearão gerações pelos séculos dos séculos!
0 Comments:
Enviar um comentário
<< Home