Post Scriptum #150
Visita a Elytis #4
E aí vai mais um trecho de Maria Nefeli, esse longo poema de Odysséas Elytis, segundo Nobel grego, em que dialogam as personagens da musa, Maria Nefeli, e do poeta, o Antifoneiro. Abaddón (nome hebreu) ou Apollyon (nome grego), é o princípe das trevas, o anjo exterminador.
Maria Nefeli diz:
PATMOS É antes de a conhecermos que a morte nos faz outros; esquivamo-nos a viver com as suas impressões digitais sobre nós semi‑selvagens de cabelo revolto gesticulando sobre harpas ininteligíveis. Mas o mundo foge... Ai ai duas vezes não vem a beleza não vem o amor. Que pena que pena mundo dominam‑te futuros mortos; e ninguém calhou ninguém calhou de ouvir sequer a voz dos anjos sequer as muitas águas sequer aquele «vem» que sonhei durante noites de grande insónia. Ir ali ali a uma ilha rochosa onde o sol caminha de lado como um caranguejo e todo trémulo o mar escuta e responde. Armada com dezasseis bagagens com sleeping bags e mapas sacos de plástico fotómetros e teleobjectivas caixas de garrafas de água mineral pus‑me em marcha – pela segunda vez – e nada. Às nove no porto de Mykonos Desaparecia já entre ouzos e palavras em inglês frequentadora de um céu ligeiro onde tudo pesa duas vezes o seu próprio peso enquanto o cordão umbilical se estira desde as estrelas para se partir e te perderes... Adormeci como só se pode adormecer sobre uma cama que aqueceram outras costas; como se caminhasse por uma praia deserta onde a lua sangrasse e nada se ouvisse senão os passos do vento na madeira podre. Com água pelos joelhos comecei a brilhar por dentro com uma melancolia insólita abri as pernas e lentamente começaram as minhas entranhas a cair malvas azuis alaranjadas; inclinando‑me com afecto lavei‑as uma a uma atenta sobretudo aos sinais como cicatrizes que deixaram as mordeduras do Invisível. Até as recolher todas no meu avental avançava sem me mover soava a música e atirava‑me pedaços de mar mais aqui – pedaços de mar mais ali. Deus meu aonde ir quando não temos destino aonde ir quando não temos estrela vazio o céu vazio o corpo e só a amargura redonda cheia agitando os seus espinhos no meio da lua como um ouriço‑do‑mar fêmea que nunca se consegue apanhar. Acordei numa casa estranha; tacteando na escuridão a minha mão por sobre a tesoura das unhas encontrou a ponta. Solução de continuidade da pele a ponta como solução de continuidade do mundo. Aqui a perdição – ali a salvação. Aqui o mercurocromo o tensoplast ali a fera devastando solidões uivando mordendo arrastando o sol por dentro do fumo. Quando ouvires o vento é a tranquilidade convertida em vampiro. | E o Antifoneiro:
O APOCALIPSE Estreito é o caminho – nunca conheci o largo a não ser uma só vez quando te beijava e ouvia o mar... E desde então é, digo, é o mesmo mar que tem devorado a dura pedra ao entrar no meu sonho e aberto as enormes distâncias. Palavras que aprendi como verdes saltos de peixes escritas com giz azul delírios que esqueci ao acordar mas que sentia outra vez ao submergir‑me e interpretar João dos Amores de boca para baixo sobre os cobertores da cama de um hotel de província com uma lâmpada nua na ponta do fio e uma barata negra parada sobre o lavatório. Para quê para quê ser homem o grau mais sumptuoso do reino animal que significa senão que quem tem ouvidos ouça não tema o que vai sofrer. Eu não senti medo eu não me resignei com humildade eu vi três vezes a morte eu fui expulso das portas. Se tens ouvidos ouve. Eu ouvi um clamor como de conchas de alto mar e voltando‑me no meio da luz subitamente vi quatro rapazes morenos que sopravam e empurravam empurravam e traziam um estreito pedaço de terra cingido ao muro de pedra com só sete oliveiras e entre eles um velho que parecia um pastor descalço de pé sobre a pedra. «Eu sou», disse‑me, «não temas pelo que está escrito que hás‑de sofrer» E estendendo a mão direita mostrou‑me na palma da mão sete profundas incisões: «Estas são as grandes tristezas que se escreverão na tua fronte mas eu tas apagarei com a mesma mão que as trouxe». De repente por trás da sua mão vi – apareceu – um magote de muitos homens excitados pelo medo que gritavam e corriam corriam e se lamentavam «Aqui vem Abaddón aqui chega Apollyon». Senti grande inquietação e uma raiva me dominou. Mas ele continuou: «Quem cometeu injustiça injustiça cometa ainda. E o sujo que se suje mais. E o justo que seja mais justo.» E como suspirei com paz infinita estendeu a mão devagar por sobre a minha cara e era doce como mel mas se amargaram as minhas entranhas. «Terás de pregar outra vez a povos e nações e muitas línguas e reis » disse. E lançando brancas chamas fundiu‑se com o sol. Tal foi o meu primeiro sonho que não consigo ainda distingui‑lo das vozes do mar nem conservá‑lo intacto. O sonho não se forma nas palavras. A minha mentira é tão verdadeira que ainda ardem os meus lábios. Se não apoiares um pé fora da terra nunca conseguirás manter‑te sobre ela. |
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