19.2.04

Post Scriptum #150

Visita a Elytis #4

E aí vai mais um trecho de Maria Nefeli, esse longo poema de Odysséas Elytis, segundo Nobel grego, em que dialogam as personagens da musa, Maria Nefeli, e do poeta, o Antifoneiro. Abaddón (nome hebreu) ou Apollyon (nome grego), é o princípe das trevas, o anjo exterminador.

Maria Nefeli diz:

PATMOS

É antes de a conhecermos que a morte nos faz outros;
esquivamo-nos a viver com as suas impressões digitais sobre nós
semi­‑selvagens de cabelo revolto
gesticulando sobre harpas ininteligíveis. Mas
o mundo foge...
Ai ai duas vezes não vem a beleza
não vem o amor.

Que pena que pena mundo
dominam­‑te futuros mortos;
e ninguém calhou ninguém
calhou de ouvir
sequer a voz dos anjos sequer as muitas águas
sequer aquele «vem» que sonhei durante noites de grande insónia.

Ir ali ali a uma ilha rochosa
onde o sol caminha de lado como um caranguejo
e todo trémulo o mar escuta e responde.

Armada com dezasseis bagagens com sleeping bags e mapas
sacos de plástico fotómetros e teleobjectivas
caixas de garrafas de água mineral
pus­‑me em marcha – pela segunda vez – e nada.

Às nove no porto de Mykonos
Desaparecia já entre ouzos e palavras em inglês
frequentadora de um céu ligeiro onde tudo
pesa duas vezes o seu próprio peso
enquanto o cordão umbilical
se estira desde as estrelas
para se partir e te perderes...

Adormeci como só se pode adormecer
sobre uma cama que aqueceram outras costas;
como se caminhasse por uma praia deserta
onde a lua sangrasse e nada se ouvisse
senão os passos do vento na madeira podre.
Com água pelos joelhos comecei a brilhar
por dentro com uma melancolia insólita
abri as pernas
e lentamente começaram as minhas entranhas
a cair malvas azuis alaranjadas;
inclinando­‑me com afecto lavei­‑as uma a uma
atenta sobretudo aos sinais como
cicatrizes que deixaram as mordeduras do Invisível.

Até as recolher todas no meu avental
avançava sem me mover
soava a música e atirava­‑me
pedaços de mar mais aqui – pedaços de mar mais ali.
Deus meu aonde ir quando não temos destino
aonde ir quando não temos estrela
vazio o céu vazio o corpo
e só a amargura redonda cheia
agitando os seus espinhos no meio da lua
como um ouriço­‑do­‑mar fêmea
que nunca se consegue apanhar.

Acordei numa casa estranha;
tacteando na escuridão a minha mão
por sobre a tesoura das unhas encontrou a ponta.
Solução de continuidade da pele
a ponta como solução de continuidade do mundo.
Aqui a perdição – ali a salvação.
Aqui o mercurocromo o tensoplast
ali a fera devastando solidões
uivando mordendo
arrastando o sol por dentro do fumo.



Quando ouvires o vento
é a tranquilidade convertida em vampiro.

E o Antifoneiro:

O APOCALIPSE

Estreito é o caminho – nunca conheci o largo
a não ser uma só vez
quando te beijava e ouvia o mar...

E desde então é, digo, é o mesmo mar
que tem devorado a dura pedra ao entrar no meu sonho
e aberto as enormes distâncias. Palavras que aprendi
como verdes saltos de peixes
escritas com giz azul
delírios que esqueci ao acordar
mas que sentia outra vez ao submergir­‑me e interpretar
João dos Amores
de boca para baixo
sobre os cobertores da cama de um hotel de província
com uma lâmpada nua na ponta do fio
e uma barata negra parada sobre o lavatório.
Para quê para quê ser homem
o grau mais sumptuoso do reino animal
que significa
senão que quem tem ouvidos ouça
não tema o que vai sofrer.

Eu não senti medo
eu não me resignei com humildade
eu vi três vezes a morte
eu fui expulso das portas.
Se tens ouvidos ouve. Eu ouvi

um clamor como de conchas de alto mar
e voltando­‑me no meio da luz subitamente vi
quatro rapazes morenos
que sopravam e empurravam empurravam e traziam
um estreito pedaço de terra cingido ao muro de pedra
com só sete oliveiras
e entre eles um velho que parecia um pastor
descalço de pé sobre a pedra.

«Eu sou», disse­‑me, «não temas
pelo que está escrito que hás­‑de sofrer»
E estendendo a mão direita
mostrou­‑me na palma da mão sete profundas incisões:
«Estas são as grandes tristezas
que se escreverão na tua fronte
mas eu tas apagarei com a mesma mão
que as trouxe».

De repente por trás da sua mão vi – apareceu –
um magote de muitos homens excitados pelo medo
que gritavam e corriam corriam e se lamentavam
«Aqui vem Abaddón aqui chega Apollyon».
Senti grande inquietação e uma raiva
me dominou. Mas ele continuou:
«Quem cometeu injustiça injustiça cometa ainda. E o sujo
que se suje mais. E o justo que seja mais justo.» E como suspirei
com paz infinita estendeu a mão
devagar por sobre a minha cara
e era doce como mel mas se amargaram as minhas entranhas.
«Terás de pregar outra vez a povos e nações
e muitas línguas e reis »
disse. E lançando brancas chamas fundiu­‑se com o sol.

Tal foi o meu primeiro sonho que não consigo
ainda distingui­‑lo das vozes do mar
nem conservá­‑lo intacto.
O sonho não se forma nas palavras.
A minha mentira é tão verdadeira
que ainda ardem os meus lábios.


Se não apoiares um pé fora da terra nunca conseguirás manter­‑te sobre ela.