18.2.04

Post Scriptum #148

Elytis em visita #3

Continuando a vasculhar a arca, aí vai mais um trecho do poema "Maria Nefeli". Desconfio que nunca será publicado em livro. Quase todo o poema (mais de cem páginas) é um diálogo entre o poeta (o Antifoneiro) e Maria Nefeli (à letra Maria Nuvem, a jovem musa). Neste trecho, os nomes dos anjos mais estranhos foram totalmente inventados pelo poeta. "Sathes e Mirioni" não sei o que é.

O Antifoneiro diz:
O PARAÍSO ORIGINAL

Não percebo patavina de pecados originais
nem de outros inventos do ocidente.
Mas em verdade ali longe
na frescura dos primeiros dias
antes da cabana da nossa mãe
que bem se estava!

As roupas brancas dos anjos recordo que as fechavam
pela frente mas as deixavam desabotoadas
como as batas das raparigas que trabalham nos cabeleireiros
maravilha – e todos os gerânios
num amplo terraço caiado
virados ao vento moíam
sem parar a negra migalha do sol.

Dias frescos de ocre e siena
em que a ilha parecia uma Lasíthi infinita
suave e pousada apenas
sobre o deslumbrante vidro martelado do mar.

De perna cruzada
na areia que o vento riscava
todas chispas de ouro das esporas
via galopar recordo
raparigas do siroco de frescas nádegas
desatando os seus cabelos de cítiso;
o meu coração frente às montanhas nuas
ducu-ducu soava como um barco a gasolina.

Foi no tempo da Folha Brilhante
quando reinavam Sathes e Mirioni.

De noite eu fazia sentido – dava-‑o aos rouxinóis
e o sonho o doce sonho estava cheio de meias luas
de riachos em dó maior para viola d'amore.

Havia malmequeres que se podiam comer
e outros que ardiam na escuridão como fogo de artifício;
mugiam os acantos e faziam amor;
sob os meus pés passavam estrelas
como cardumes e o desfiladeiro
azul escuro avançava nas minhas entranhas –
que bem se estava!

Os anjos atormentavam-‑me; muitas vezes
Juntavam-‑se à minha volta e perguntavam-‑me:
«que é a dor?», «que é a doença?», mas eu não fazia ideia.
Nem o sabia nem nunca tinha ouvido falar da
árvore pela qual entrou a morte no mundo.
Então? Era verdade a morte? Não esta, a
que virá com o primeiro soluço do recém nascido? Era verdade
a injustiça? A loucura dos povos? E as canseiras do dia-‑a-‑dia?

No leito das plantas sugava a verbena.
e todos os Arcanjos Miguel Gabriel
Oriel Rafael
Gabudelón Aker Arfugitonos
Belukós Zabuleón se riam movendo
as suas douradas cabeças como milho;
sabendo que a única morte a única é a
que os homens construíram com o seu pensamento

E a sua grande mentira foi que nunca existiu a Árvore.






A verdade «constrói-‑se» exactamente
como se constrói a mentira.
E Maria Nefeli:

O COMETA

Mas olha que fui criada para cometa
Agradavam-‑me as alturas até quando
ficava de boca sobre a almofada
de castigo
durante horas e horas.
Sentia o meu quarto subir
não sonhava – subia
tinha medo e gostava.
O que via era como dizer
algo parecido com a «recordação do futuro»
árvores e árvores que fugiam montanhas que mudavam de aspecto
campos geométricos de bosquezinhos escuros
como púbis – tinha medo e gostava
de tocar ao de leve os campanários
acariciar-‑lhes os sinos como testículos e perder-‑me...

Pessoas com leves guarda-‑chuvas passavam de soslaio
e sorriam-‑me;
por vezes batiam à vidraça: «menina»
tinha medo e gostava.
Eram «os de lá de cima» assim as chamava
não eram como «os de cá de baixo»;
tinham barbas e muitos seguravam na mão uma gardénia;
alguns entreabriam a porta da varanda
e punham-me discos extravagantes no pick-up.
Recordo «Anita de sandálias»
«O Geyser de Spitzburg»
«Não mordemos o fruto não virá o mês de Maio»
(e lembro-‑me ainda doutros)
repito – não sonhava
de repente aquele «Entreabre o teu vestido tenho um passarinho para ti».
Tinha-‑mo trazido o Cavaleiro-ciclista
um dia em que estava sentada e fingia ler
tinha apoiado a sua bicicleta
junto à minha cama com todo o cuidado;
depois puxou o cordel e eu enfunei-‑me no ar
brilhava a minha roupa interior colorida
observava que diáfanos se tornam aqueles que amam
frutas tropicais e lenços do longínquo continente;
tinha medo e gostava
o meu quarto subia
ou eu – nunca o percebi.
Sou de porcelana e magnólias
a minha mão provém dos antigos Incas
deslizo pelas portas como
terramoto infinitamente pequeno
que só os meninos e os cães sentem;
deontologicamente devo ser um monstro
e contudo a oposição
sempre me alimentou mas isso compete
julgá-‑lo aos dos chapéus bicudos
que conversam às ocultas de noite
com a minha mãe. Uma vez
a voz da trombeta de longínquos soldados
enrolava-‑se em mim como uma serpentina e todos ao meu redor
aplaudiam – restos de tempos incríveis
suspensos no ar.
No banho contíguo as torneiras estavam abertas
de boca para baixo na almofada
contemplava as fontes de branco imaculado que me salpicavam;
que bom Deus meu que bom
caída no chão ser pisada
e guardar ainda nos meus olhos
um luto tão remoto pelo passado.



Também ao contrário se veste a fantasia
e em todas as suas medidas.