Post Scriptum #148
Elytis em visita #3
Continuando a vasculhar a arca, aí vai mais um trecho do poema "Maria Nefeli". Desconfio que nunca será publicado em livro. Quase todo o poema (mais de cem páginas) é um diálogo entre o poeta (o Antifoneiro) e Maria Nefeli (à letra Maria Nuvem, a jovem musa). Neste trecho, os nomes dos anjos mais estranhos foram totalmente inventados pelo poeta. "Sathes e Mirioni" não sei o que é.
O Antifoneiro diz:
O PARAÍSO ORIGINAL Não percebo patavina de pecados originais nem de outros inventos do ocidente. Mas em verdade ali longe na frescura dos primeiros dias antes da cabana da nossa mãe que bem se estava! As roupas brancas dos anjos recordo que as fechavam pela frente mas as deixavam desabotoadas como as batas das raparigas que trabalham nos cabeleireiros maravilha – e todos os gerânios num amplo terraço caiado virados ao vento moíam sem parar a negra migalha do sol. Dias frescos de ocre e siena em que a ilha parecia uma Lasíthi infinita suave e pousada apenas sobre o deslumbrante vidro martelado do mar. De perna cruzada na areia que o vento riscava todas chispas de ouro das esporas via galopar recordo raparigas do siroco de frescas nádegas desatando os seus cabelos de cítiso; o meu coração frente às montanhas nuas ducu-ducu soava como um barco a gasolina. Foi no tempo da Folha Brilhante quando reinavam Sathes e Mirioni. De noite eu fazia sentido – dava-‑o aos rouxinóis e o sonho o doce sonho estava cheio de meias luas de riachos em dó maior para viola d'amore. Havia malmequeres que se podiam comer e outros que ardiam na escuridão como fogo de artifício; mugiam os acantos e faziam amor; sob os meus pés passavam estrelas como cardumes e o desfiladeiro azul escuro avançava nas minhas entranhas – que bem se estava! Os anjos atormentavam-‑me; muitas vezes Juntavam-‑se à minha volta e perguntavam-‑me: «que é a dor?», «que é a doença?», mas eu não fazia ideia. Nem o sabia nem nunca tinha ouvido falar da árvore pela qual entrou a morte no mundo. Então? Era verdade a morte? Não esta, a que virá com o primeiro soluço do recém nascido? Era verdade a injustiça? A loucura dos povos? E as canseiras do dia-‑a-‑dia? No leito das plantas sugava a verbena. e todos os Arcanjos Miguel Gabriel Oriel Rafael Gabudelón Aker Arfugitonos Belukós Zabuleón se riam movendo as suas douradas cabeças como milho; sabendo que a única morte a única é a que os homens construíram com o seu pensamento E a sua grande mentira foi que nunca existiu a Árvore. A verdade «constrói-‑se» exactamente como se constrói a mentira. | E Maria Nefeli:
O COMETA Mas olha que fui criada para cometa Agradavam-‑me as alturas até quando ficava de boca sobre a almofada de castigo durante horas e horas. Sentia o meu quarto subir não sonhava – subia tinha medo e gostava. O que via era como dizer algo parecido com a «recordação do futuro» árvores e árvores que fugiam montanhas que mudavam de aspecto campos geométricos de bosquezinhos escuros como púbis – tinha medo e gostava de tocar ao de leve os campanários acariciar-‑lhes os sinos como testículos e perder-‑me... Pessoas com leves guarda-‑chuvas passavam de soslaio e sorriam-‑me; por vezes batiam à vidraça: «menina» tinha medo e gostava. Eram «os de lá de cima» assim as chamava não eram como «os de cá de baixo»; tinham barbas e muitos seguravam na mão uma gardénia; alguns entreabriam a porta da varanda e punham-me discos extravagantes no pick-up. Recordo «Anita de sandálias» «O Geyser de Spitzburg» «Não mordemos o fruto não virá o mês de Maio» (e lembro-‑me ainda doutros) repito – não sonhava de repente aquele «Entreabre o teu vestido tenho um passarinho para ti». Tinha-‑mo trazido o Cavaleiro-ciclista um dia em que estava sentada e fingia ler tinha apoiado a sua bicicleta junto à minha cama com todo o cuidado; depois puxou o cordel e eu enfunei-‑me no ar brilhava a minha roupa interior colorida observava que diáfanos se tornam aqueles que amam frutas tropicais e lenços do longínquo continente; tinha medo e gostava o meu quarto subia ou eu – nunca o percebi. Sou de porcelana e magnólias a minha mão provém dos antigos Incas deslizo pelas portas como terramoto infinitamente pequeno que só os meninos e os cães sentem; deontologicamente devo ser um monstro e contudo a oposição sempre me alimentou mas isso compete julgá-‑lo aos dos chapéus bicudos que conversam às ocultas de noite com a minha mãe. Uma vez a voz da trombeta de longínquos soldados enrolava-‑se em mim como uma serpentina e todos ao meu redor aplaudiam – restos de tempos incríveis suspensos no ar. No banho contíguo as torneiras estavam abertas de boca para baixo na almofada contemplava as fontes de branco imaculado que me salpicavam; que bom Deus meu que bom caída no chão ser pisada e guardar ainda nos meus olhos um luto tão remoto pelo passado. Também ao contrário se veste a fantasia e em todas as suas medidas. |
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