18.2.04

HORA DA CRÓNICA

"Segredos de Polichinelo", por Nicolau Saião.

Eu gostava de ser muito ingénuo, muito doce, muito parecido com a Sãozinha, com a Santa da Ladeira (que era ingénua e doce até dizer basta) ou com o senhor ministro Bagão Félix ( que como nos ensinou Camões, por antítese da antítese, significa feliz). E que me parece ser, sem brincadeiras, uma santa alma.
Previno já os mal intencionados – ou seja os que não são doces, nem ingénuos e, espero eu, felizes – que não vejam maldade, ou malícia, nesta recolha estética. Justifico-me já: todas aquelas personalidades, uma no capítulo da quase santidade (o dr Bagão Félix), outra na administração de bens (a Sãozinha, pois uma alma salva é um sumo bem), a última no capítulo da doçura ética (a Santa da Ladeira, que só de lhe vermos o vulto branco e ouvirmos alguns dos pretéritos raciocínios espirituais até a alma nos entrava em levitação), são um exemplo para todos nós - por vezes malcatrazes, por vezes desaustinados, frequentemente pecadores com todas as veras da estrutura corporal.
E se nós poderíamos ganhar, e muito, com a frequentação daqueles convivas do etéreo, digamos assim, outra entidade há que nem se fala! Refiro-me, com modéstia, ao Estado Português.
E isto porque, depois de muitos raciocínios em jeito de santíssima vigília, operosa análise misturada com a leitura de muitas notícias apanhadas nos jornais, em livros e até nos discursos do presidente Pinto da Costa e do meu autarca preferido – e não estou a brincar! – dr. Santana Lopes, concluí que o Estado Português, apesar da contra-informação, não é uma pessoa de bem, como se diz em vernáculo jurídico.
Com efeito, como pode ser pessoa de bem uma entidade que leva dez anos a pagar uma indemnização a um indivíduo que ficou debaixo dum muro (esmagado como uma mosca ou um civil colectado) ao serviço e por culpa do próprio Estado? Como pode ser pessoa de bem uma entidade que mente sistematicamente no quotidiano público, que se aboleta com os dinheiros que obrigatoriamente lhe cedemos e depois, ao invés de os gastar ao serviço dos cidadãos (pois o Estado não tem dinheiros dele, é apenas uma entidade administrativa) o malbarata sabe-se lá onde, tripudiando sobre os nossos corpos e as nossas almas de gente vulgar mas de brios?
Tem sido uma ficção ardorosamente acatitada essa historieta do Estado sério e honrado. É um imperativo moral e ético referir ao menos isto: o Estado luso é, metaforicamente falando, muito parecido com esses bandoleiros das novelas de aventuras que, de espingarda nas manápulas e punhal à ilharga, ferozmente tocaiam os incautos nas curvas da sombria floresta em que se tornou a vida nacional.
Desaparecem uns sacos do "cobre"? Pois bem, foi uma derrapagem orçamental. Uns tantos calmeirões fizeram evolar-se, por artes mágicas, continhas caladas? Foi um acto de contabilidade criativa, como agora se diz.
Juro-vos: como poeta, sinto-me envergonhado por causa do meu poder efabulativo estar a muitas milhas das obras-primas de léxico estatal que por aí se manifestam. Sinto-me deprimido. Abananado.
A solução é, se calhar, pedir pelas alminhas um pouco de iluminação interior. À Sãozinha, à Santa da Ladeira.
Ao dr. Bagão talvez não, pois trabalheira a valer com outros assuntos ingentes já ele deve ter, pessoa séria e devotada que é inapelavelmente.


Nicolau Saião