18.1.04

Post Scriptum #122

Encontrei esta prosa bárbara no meu computador e, com o dedo mais rápido do que o pensamento, lancei-a no blogue. Pronto, agora já está, paciência, aqui fica, bárbara e inacabada como saiu do disco duro:

"O centralismo real conduzira em França a uma exaltação da coisa política que deu origem à revolução francesa e aos seus ecos por todo o século XIX. Praticamente todas as gerações francesas desse século assistiram a um episódio revolucionário ou contra-revolucionário de características exacerbadas. Isto implicou, como é evidente, bastantes tempestades no domínio da vida espiritual e afectou duradouramente todos os pensadores, entre eles os escritores.

Paralelamente, a revolução industrial conduzira, como corolário, ao surgimento dos grandes jornais de massas modernos e a França foi pioneira neste capítulo. O "Petit Journal" foi o primeiro periódico em todo o mundo a ultrapassar o milhão de exemplares diários, em 1886.

A imprensa de massas trouxe uma revolução no jornalismo. Antes dela, a imprensa era veículo de ideias, um instrumento ao serviço dos pensadores (se descontarmos a literatura de cordel que levava às ruas e às feiras, sem carácter regular, os crimes horríveis e os sucessos extraordinários). Depois dela, a "última notícia", o facto bruto passou a dominar. E também passou a dominar a vontade do capitalista, que organizava o empreendimento.

A produção de um jornal diário exigia grandes investimentos e um enorme aparato de produção e distribuição. Não era possível sem modernas (e caras) máquinas de impressão, sem meios de comunicação como a diligência e o caminho de ferro, sem um batalhão de tipógrafos e revisores de provas, repórteres e correspondentes, sem uma miríade de pontos de distribuição e de reclame (mais tarde chamado publicidade). E implicava a pressa da escrita e a facilidade da leitura. O jornal ia buscar o leitor quase casa a casa, criava o público, mas, na relação superficial que com ele estabelecia (o jornal era para deitar fora, salvo neuropatias), estava dependente da sensação imediata, do pensamento fácil. Por outro lado, impunha-se neutralizar um pouco os debates de ideias: não se ia perder num arrebatamento o custoso capital investido; e, sobre isto, outro valor mais alto se alevantava: não devia o jornal violar os princípios sagrados do seu proprietário e da propriedade -- debates, sim, mas ligeiros, e dentro dos limites da legalidade jornalística. Tudo isto junto significava prosa ligeira, pensamento caseiro, amansamento dos voos românticos, truculência só contra o anormal e o insólito.

Num país centralizado e politizado como a França, o aparecimento da imprensa de massas teve repercussões fulminantes na vida intelectual.

Os grandes patrões da imprensa francesa eram autênticos aventureiros, autodidactas, sem qualquer pedigree social ou cultural, gente brutal: Emile de Girardin, fundador de "La Presse" que não precisara de pai para fazer um nome e só deixava de mudar de ideias para mudar de camisa, matara um adversário em duelo; Hippolyte de Villemessant (de verdadeiro nome Hippolyte Cartier, também filho de pai incógnito), dono do "Figaro", quando se cansava de um escritor seu colaborador, convidava-o para almoço e dava-lhe uma bela bengala "para ir passear", Moïse Polydore Millaud, fundador do "Petit Journal", tinha de letras o bastante para assinar o nome e contratou um autor de contos fantásticos para escrever "qualquer coisa, seja lá o que for", na primeira página.

Contudo, estes homens tinham os escritores de Paris a seus pés. Chateaubriand escreveu as suas "Mémoires d'Outre-Tombe" para uma sociedade anónima impulsionada por Girardin, que publicou a obra no seu jornal após a morte do escritor. Balzac, Eugène Sue, George Sand, etc., etc., todos os romancistas escreviam folhetins para os jornais. Alexandre Dumas, não contente de escrever ele próprio 12 horas por dia, contratou um grupo de ajudantes para o ajudar.

Numa palavra, os grandes e pequenos prosadores transformaram-se em meios ou meros criados dos patrões da Imprensa. Claro que isto que se passou em França também se passou noutros países; mas não com a mesma brutalidade e clareza (a famosa clareza do pensamento francês). Claro que a Imprensa, mesmo esta Imprensa semi-despolitizada, desempenhou um certo papel na luta contra a censura, inclusivamente por ter nascido durante o segundo Império de Napoleão III; mas, por outro lado, nesse jogo do gato e do rato, acabou por ajudar os escritores a compreenderem onde estavam os seus interesses, a ajeitarem os seus ardores intelectuais aos imperativos categóricos da circunstância.

Assim foi que a III República veio encontrar a República das Letras definitivamente ganha para a causa da vida prática. Toda? Não. Havia uma pequena aldeia que lhe resistia, porque votada ao abandono por essa mesma vida prática: a aldeia dos poetas."


Aqui se interrompe abruptamente o manuscrito. Entretanto, quem quiser ver outra versão, de outro autor, mais comprida e de outro ponto de vista, pode ir aqui, ao blog do romance.