14.1.04

Post Scriptum #119

Mais Giórgos Markópoulos (1951-)



Aí vai outro poema do poeta grego Giórgos Markópoulos (depois do exemplo dado no Post Scriptum #116), onde é mais transparente a utilização da linguagem quotidiana com efeito expressivo. Tenho consciência de que esta tradução ainda está imperfeita, mas não queria deixar de a pôr aqui, mesmo assim como está. Talvez mais tarde consiga algo de melhor e se possa ver então, quer a força do original quer o trabalho do tradutor. Observações: Kaisarianí é um bairro popular de Atenas; o rembétiko é um tipo de canção popular que se pode comparar ao fado, quer pelos temas das letras (embora a canção grega aborde temas mais ousados como a droga), quer pelo seu contributo para a criação de uma ideologia urbana popular.

A CRÉDITO

Goulas, o Korátos, apelidado Thorís,
de Sálona de Stereá
no dia da Páscoa mandou pintar o retrato
a um pintor­‑funileiro ambulante
por um pouco de azeite arroz e um bocado de sabão.

Goulas, o Korátos, apelidado Thorís,
pintado, foi vendido pela velha
numa feira da ladra
por uma escova de nylon por uma velha balança
e um espelho do Congo.

A tua tristeza, eh pá, tesouro,
É como a Kaisarianí nas noites de Outono.

Pára lá de me chagar com o rembétiko
por detrás das tascas, nas ruas
Os marujos naufragaram, os marujos nos petroleiros
pegando-se pelo quinhão, perderam-se para sempre.

A última vez que me escreveste, lembra­‑te!
O teu recado soube-o num bar
“tens carta”, disse o fogueiro do navio,
choviam grupos de clientes que praguejavam e gritavam
e havia um rádio que chorava ao canto
“O miúdo pirou­‑se na outra noite”, escrevias,
às tantas foi comprar fósforos à esquina”
.


Noites enormes duplamente esfaqueadas com a amargura do infinito,
noites de barulhos surdos tirânicas e infindas
mil momentos e eternidade mil momentos e morte,
e era uma época difícil, ninguém a ouvia,
só alguma “rapaziada” despejava as noites nas tascas
a juntar­‑se ao mal e à guerra civil, diz­‑se,
mas quem sabia dessas coisas
via a solidão a torturar e a culpa a espreitar,
até que certa noite te voltámos a ver num palácio mudo sozinha
“ei... como vais?” gritámos, deus meu.
O nosso corpo e o teu corpo
molde de gesso estragado pela chuva e pelos anos
como quartel da guarda em ruinas quartel da guarda
“hão­‑de vir uma noite aqueles que esquecemos, dissemos­‑te,
de rosto inexistente
o crânio cheio de lagartos e nu
descerão passo a passo sozinhos
descobrirão uma alegria pela vida
por sobre as casas e os túmulos
descobrirão uma alegria pela vida
um amargor de amor por nós e pelos mortos”
,
e depois tornaste a desaparecer.

– Abri um pouco o rádio, a luz e as janelas
porque, na verdade, que vergonha morrermos nos nossos lençóis brancos
enquanto todos os nossos amigos foram assassinados nos passeios.


Os assaltantes do inferno