21.1.04

O Povo é Sereno #36

Já chegamos, perdão, chegámos* à Libéria?

Ora vejam lá que notícia me impressionou hoje: a formação do mercado ibérico liberalizado da electricidade!

E porquê? Porque tudo ali é trapalhice (ia a fugir-me boca para a verdade, mas, graças a Deus, há eufemismos).

Primeira trapalhice: o mercado vai reduzir os preços da energia, “se a economia está certa”, corrige Durão Barroso. “Se a economia está certa” – já lá vamos. Primeiro, esta afirmação: “vai reduzir os custos da energia”. Isto é bom? Pode ser a curto prazo, mas a redução dos preços da energia facilita o esbanjamento. Os países industrializados têm vindo a “poupar” energia, mas fazem-no exportando as suas indústrias (deslocalização) e aumentando o consumo da electricidade. A ilusão é perfeita, as consciências ficam tranquilas, mas não estamos melhor. O mecanismo dos preços não reflecte a necessidade de chegarmos a uma economia mundial frugal em energia.

Segunda trapalhice: o mercado vai certamente reduzir os custos da energia eléctrica num primeiro tempo. Foi tudo feito para isso: uma entidade reguladora vai fixar as tarifas de acesso à rede para as empresas fornecedoras e a concorrência inicial certamente obrigará esses fornecedores a reduzir os seus custos para entrarem no mercado, utilizando a margem que lhes resta entre a tarifa de acesso e o preço facturado aos clientes.

Mas, num segundo tempo, o que se vai dar é simples: compressão dos investimentos, envelhecimento da rede, apagões. Foi o que aconteceu na Califórnia, por exemplo. E quando aconteceu, quem foi acorrer às empresas "em dificuldade", aos "piratas", como os qualificou a certa altura o governador Gray Davis? Os "contribuintes" claro, o poder público, que ficou completamente endividado, situação que custou o cargo ao desgraçado e timorato governador e conduziu ao poder... precisamente o representante e amigo do lobby da electricidade, Schwarnegger. Escusado será também dizer que as facturas de electricidade acabaram por aumentar, depois de terem baixado.

E ainda o que está para vir. Como o “mercado” não sai todo armado da coxa de Zeus, instituem-se bolsas de energia, onde as empresas fornecedoras vão comprar Watts-hora (para já, reina a maior confusão sobre a sede deste negócio, que não se sabe onde fica). O que antes era feito pelas empresas públicas e indirectamente dirigido ou controlado pelo Estado, vai ser feito por uma entidade “independente”. Em que imperarão meia dúzia de empresas dominantes. Lembram-se da Enron? Era precisamente uma corretora de electricidade, filha da liberalização, e utilizou a sua posição dominante para as falcatruas que levaram a um dos maiores escândalos financeiros dos EUA. Porque, meus caros amigos, na electricidade, a concorrência é sempre fictícia: a dimensão dos investimentos, a limitação dos recursos primários (petróleo, carvão, hidroelectricidade, etc.), tudo isso impede a entrada no mercado de muitos concorrentes.

Claro, claro, quando surgirem os problemas, os adeptos da liberalização vão dizer: havia esta e aquela imperfeição no mercado, vamos já corrigir. E inventarão novas trapalhices, até à próxima crise. Assim vai a vida.

Entretanto, é menosprezado aquilo que é mais importante, que é crucial para a nossa sobrevivência como seres humanos: o desenvolvimento das energias renováveis. O isolamento das habitações, a redução das necessidades de transporte, o apoio às pequenas centrais fotovoltaicas (sim, sim), os colectores solares, o desenvolvimento de uma agricultura menos voraz em energia, a par com a reflorestação, e sei lá que mais. Tudo um imenso campo em que as energias criadoras poderiam ser mobilizadas, criando emprego e vivendo melhor gastando menos.

Enfim, bem-vindos à Libéria, novo nome da nossa península luso-espanhola.

* É nestas subtilezas que se vê quem é do Porto: não consigo distinguir foneticamente "chegamos" de "chegámos".