9.1.04

KATERINA ANGHELÁKI-ROOKE: DIA 4 E ÚLTIMO.




REGRESSO AO TEMPO SEM AMOR

O cão foi o primeiro sinal
de que brilham vazios os espelhos cá dentro
e de que havia um espaço infinito para ele
no interior da minha história;
podia entregar-me inteira a ele
aos seus pulinhos à luz
e outras actividades caninas.
Antigamente era assim, como casinha de recém-casados,
e a alma,
no ar meio roído em que se abrigava,
onde ainda não havia cheiros e choros,
leve como escama a arrastava o futuro.

Ontem à noite tornei a perder o barco
e enquanto os filhinhos dos amigos quietos
mergulhavam no seu sono azulado,
enroupava-me uma serenidade semelhante à origem,
talvez porque só o silêncio
pode unir a mirra da vida
com o furúnculo da morte;
mudo o humano
vê primeiro uma depois o outro
a alastrarem na carne.
E ninguém sabe se é progresso ou imobilidade
este vazio que como lava espessa
recobre as culturas do espírito,
se as obras que se apresentam à memória
vão a subir ou a descer,
se é perda ou lucro a dedicação
e se se roeram os dentes da máquina
no momento em que íamos para novo voo.

É tão certa hoje a terra
com os ramos secos, o pouco verde,
os torrões de terra que bondosos
se descansam na terra repartindo a emoção
equitativamente entre o fim e a origem...
Mas é fim esta beleza
que sempre inacessível
aflora os humanos torturados?
É fim aquilo que desarticulado se prepara
nas câmaras escuras do tempo
e não deflagra em desesperos e pragas,
mas bate em retirada diante das explosões que se aproximam?
É fim ou outra origem
na qual hoje à noite farão círculo
as caudas dos bichos adormecidos
em redor do meu sono,
para que eu passe ligeira
para a sombra inconsciente
como se nunca tivesse gritado:
"Meu amor, perco-me se me deixares agora!"
como se nunca tivesse tido o corpo sem fim.

(de "Belo deserto o corpo").

Katerina Angheláki-Rooke (Grécia, n. 1939).
Tradução inédita de Manuel Resende.