Cimbalino Curto #52
Quando entrámos, vindos da Rua da Nau Vitória, duas sonolentas cabras, que estavam debruçadas numa varanda do 2º andar, fitaram-nos com um ar desconfiado. Do outro lado da rua, um miúdo passeava orgulhosamente o seu imenso porco rosado, preso por uma trela de fios eléctricos. Caía uma insistente chuva miudinha parecida com nevoeiro. A rua era um mar de pequenos pedaços de alcatrão, flutuando sobre a lama. E nós parecíamos dois gatos apavorados, voando desajeitadamente de um pedaço para o outro, com os nossos guarda-chuvas azuis e sapatos de boas marcas.
Mas é impossível evitar a lama. A lama está por toda a parte. A lama salta em golfadas pelas ruas, entra nas casas, fecha-se nos quartos, deita-se com as pessoas. As janelas não têm vidros, as portas são indecisos bocados de madeira e plástico, as paredes são quantidades intermináveis de tijolos amontoados sem ordem, com os seus arames e fios de terra irrompendo do meio do cimento, e lançando-se para o ar como se a sua única vontade fosse sair rapidamente dali.
Um estranho silêncio abateu-se sobre os carros parados. Muitos estão queimados, esventrados, abandonados, ao longo das bermas e no meio das ruas. Dizem que é para impedir o avanço rápido dos carros da polícia durante as rusgas. Sob a chuva, homens e mulheres revolvem o lixo, o lixo, o lixo. À procura, à procura, à procura. Como os ratos.
As pessoas vivem assim. Como se estivessem mortas, sepultadas em buracos escuros de 70 m2, dois ou três andares acima do solo. E nada do que se possa dizer sobre isto corresponde inteiramente à verdade. O bairro camarário de São João de Deus, no Porto, para todos os efeitos, não existe.
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