30.6.05

Eu não acredito em bruxas

Eu não acredito em bruxas mas, que as há, há!

Uma das coisas que sempre me intrigou na Bélgica (país onde, de resto, perdi a virgindade), foram os problemas linguísticos e regionais e comunitários.

Digamos que o nível de conflitualidade é superior ao português (Porto/Lisboa)ou grego (Salónica/Atenas) e inferior ao Espanhol (Madrid/Catalunha, ou pior Madrid/País Basco).

Nesse sentido, evocarei diversos episódios neste capítulo, para chatear.

Primeiro episódio

Espanhol.

Tendo eu vivido num ambiente multicultural, deu para acontecer que um colega resolveu fazer um campeonato de futebol de cinco entre várias nacionalidades.

Chegou a altura de termos de jogar contra os espanhóis, nós, portugueses. Não querem saber que os castelhanos nos pediram para os levarmos no nosso carro para o jogo, porque não queriam ir com os catalães?

Não querem saber que um amigo meu de Madrid, uma vez em que o Porto jogava contra o Barcelona, me veio dizer muito em segredo ao ouvido, na bicha da cantina ("Espero que o Porto ganhe.") Não era qualquer um, era um que traduziu o Seféris em Espanhol, perdão, castelhano.

Claro que o Porto perdeu por 3-0.

Amanhã há mais.

S/Z

Segundo me informa o meu cão, um tal Barthes escreveu um livro chamado "S/Z", como outros livros se chamam desejo.

Isto explicaria muitas coisas, diz ele. Quem sou eu para desmentir um cão que toma as almofadas por cadelas insufláveis?

Aceitemos pois o que o mundo nos atira para cima. Chatice!

Ainda o petróleo

Em comentário a um post que aqui pus sobre o "fim do petróleo", o Bom Selvagem escreveu:

"Lamento pôr em causa esta recorrente ficção mas depois do petróleo virá o gás natural. Ainda vai dar para muitos anos e com uma transição suave, visto que os carros a gasolina podem, com uma pequena transformação, funcionar a GPL."

Será. Lembro apenas que recentemente se realizou em Lisboa uma conferência científica sobre o assunto na Fundação Calouste Gulbenkian (25 deMaio), a qual deve ter tido mais cobertura jornalística lá fora do que em Portugal. As comunicações e contributos para essa conferência encontram-se disponíveis na página da Universidade de Évora.

A Conferência chamava-se IV INTERNATIONAL WORKSHOP ON OIL AND GAS DEPLETION (sublinhado meu) e era organizada pela Associação para o Estudo do Pico de Produção do Petróleo e do Gás (ASPO). A tese central é a de que chegámos ou estamos a chegar ao pico de produção mundial de petróleo e gás, e que as consequências económicas e sociais serão profundas e gravíssimas.

A zona é abundante em caça grossa

"Vou comprar um abat-jour e adaptá-lo à minha cabeça para me ligar e desligar sempre que me apetecer."

Nota de rodapé

No original lê-se Springprozession. Esta procissão, que tem lugar na cidade de Esternach todos os anos, na terça-feira de Pentecostes, caracteriza-se pelo costume de, por cada três passos dados em frente, se recuar dois.

Usura dois

Pergunta jpp se não faltará um verso na Usura do Pound, um verso em que faltaria ouro a Duccio por causa da usura.

Que eu saiba, não. E também não sei se haverá outro poema em que o ouro, Duccio e a usura estejam reunidos.

Entretanto, e porque não quero que vos falte nada, e porque bolas isto é a internet, aí vai uma ligação para o original de Pound, com notas, remissões e explicações de nomes e circunstâncias em hipertexto.

A esta hora, as pessoas de bem ainda estão a dormir

Neste país, há uns tipos que se consideram os únicos e verdadeiros defensores do "direito à vida" e à "família"(?). Depois, há os outros. Quer dizer, aqueles que estão contra o "direito à vida". Quer dizer, os assassinos. Às vezes dá-me ganas, nem sei. Já que estou do lado dos que têm a fama de assassinos, deveria pelo menos tirar algum proveito disso.

O dia conseguido

Numa destas tardes, estando de férias, li finalmente o "Ensaio sobre o Dia Conseguido", de Peter Handke. 70 longas páginas para tentar definir o que é o "Dia Conseguido". Literatura a mais, filosofia a mais. Um grande desperdício. Qualquer pessoa sensata sabe que o "Dia Conseguido" exige apenas uma embalagem grande de amendoins, algumas cervejas e um joguito de bola na televisão.

Da abstracção

Existirá abstracção (na pintura, na escultura, na poesia)? Tenho as minhas dúvidas. Toda a arte abstracta pode ser considerada apenas como uma síntese do mundo, reduzindo-o a uma essência, talvez (nos casos extremos) atómica, mas ainda assim real, concreta. A relatividade do concreto (cuja poliédrica dimensão o torna tão fluido) permite-nos pensar que a abstracção é para uns uma utopia, para outros um papão inexistente.

Ruy Ventura

29.6.05

Poesia e usura

Decididamente decidido a estragar a digestão ao maior número possível de pessoas que venham aqui, sobretudo depois das sensacionais revelações dos últimos dias, então aí vai mais um insulto à poesia.

Ezra Pound tinha um programa de rádio de propaganda na Itália fascista. Porquê? Porque sinceramente, não acreditando forçosamente em tudo o que Mussolini dizia, adoptava o ponto de vista do artesão medieval, inimigo da usura, do juro.

O ponto comum entre ele e os fascistas era esse: a usura. Os fascistas, repositório de todos os ressentimentos, atacavam o capitalismo pelo lado da finança (usura), enquanto o ajudavam pelo lado da política (se não perceberam, metam explicador). Marinetti vogava alegremente nessas águas, ele que defendia a velocidade, a violência, a guerra, a técnica moderna.

Ezra Pound punha-se numa posição diferente: ele acreditava sinceramente no seu discurso. Ele era de facto um artesão, como o provam as inúmeras traduções-versões que nos legou. Mas a sua teoria não deixava de ser ingénua e manipulável.

Aí vai numa das várias traduções que correm em português (um dia em que me ache mais pachorrento, talvez perprete a minha versão):

Com a Usura



Com a usura nenhum homem tem casa de pedra firme
de blocos bem talhados
e bem lisos
para o desenho os recobrir na face,
com a usura
nenhum homem tem um paraíso pintado na sua igreja

harpes et luthes
nem sítio onde a Virgem receba a anunciação
e onde um feixe de luz jorre da ferida,
com a usura
nenhum homem vê Gonzaga os seus herdeiros e as suas concubinas
nenhum quadro é pintado para durar
ou viver com ele
é pintado mas é para vender,
para vender depressa
com a usura, pecado contra a natureza,
o teu pão é feito cada vez com piores farrapos
o teu pão é seco como o papel,
sem trigo da montanha, sem boa farinha
com a usura o traço torna-se grosseiro
com a usura não há fronteiras
e nenhum homem pode achar um lugar para a sua casa.
0 pedreiro fica longe da sua pedra o tecelão longe do seu ofício.
COM A USURA
a lã não chega aos mercados
os carneiros não ganham lã com a usura
A usura é uma peste, a usura torna romba a agulha nas mãos da virgem
e embaraça os gestos da fiandeira.
Pietro Lombardo não veio pelo caminho da usura.
Duccio não veio pela usura
Nem Pier della Francesca; Zuan Bellin` também não foi pela usura
nem foi com ela que pintaram «La Calumnia».
Não foi pela usura que veio Angelico; nem Ambrogio Praedis,
Nem veio a igreja talhada em pedra assinada: Adamo me fecit.
Não veio pela usura Santa Trófima
Não veio pela usura Santo Hilário,
A usura corrói o cinzel
Ela corrói a arte e o artesão
Ela enrodilha o fio no ofício
Ninguém aprende a bordar a ouro seguindo o modelo dela;
0 azul tem um cancro por causa da usura; o carmesim fica por bordar
A esmeralda não encontra Memling
A usura mata a criança ainda no ventre
Ela corta a carreira aos jovens
Ela leva à cama a paralisia, ela está deitada entre a jovem desposada e o seu esposo.
CONTRA NATURA
Levaram prostitutas a Eleusis
Ao banquete assentam-se cadáveres
A convite da usura.

Ezra Pound

(Tradução de Goulart Nogueira)

Desafortunadamente

Desafortunadamente, alguns dos leitores deste blogue, e mesmo mais do que um, tomaram à letra uma ironia aqui transcrita. Não é que o problema não exista, mas a forma de o tratar era claramente irónica.

Para sossegar as almas inquietas, aqui deixo uma declaração do mesmo autor, veterano da internet em língua francesa, muito anterior à moda dos blogues, sobre as suas pretensões impertinentes:

A force de regarder mon nombril en quête d'ailleurs, j'ai décidé il y a quelques temps d'ouvrir mon bavoir au monde entier, au milieu des colifichets et des marchands du temple, coincé entre les poncifs.com et les dépressifs point à la ligne.

Voilà, c'était ma phrase d'accroche. Je ne l'ai pas changée depuis 3 ans.

Quand le doute m'assaille, n'ayant guère les moyens de retrouver les guerriers du même nom en Afrique, je ponds tel la poule des âneries passagères. Je me mégalomanise, je me célèbre, j'ai l'impression, ça m'occupe. Putain, je me trouve terriblement brillant ! Ah, ça mériterait un prix, des honneurs, une distinction ! C'est la grande classe qui m'irrigue, la verve en plume, je m'étonne encore. La poissonnerie du petit texte, de l'en-cas, de l'à-propos, oui, j'avoue, c'est moi, c'est ici. Ça ne vous coûtera rien, à vot'bon c?ur messieurs-dames, lisez-en un, je vous jure que c'est gratuit, que c'est de la bonne...

Mais bon.

Depuis quelques temps, de nombreux usurpateurs, et pas des moindres, des dilettantes, des libéraux, parfois même des Anglo-saxons, tentent de m'imiter sous la forme d'un machin, au néologisme étrange, "weblog" ou, pour les fainéants, "blogs". Ceux-là ne tiennent pas la comparaison, et crèvent rapidement par manque d'envie, de verve, de petit dégoût. Alors que moi, ah, MOI, ah ah ah ! J'ose l'avouer : moi !

28.6.05

Tiro o chapéu

Só hoje li isto.

Quem me dera ter tido a cabeça fria e o coração quente e a coragem para escrever o mesmo.

Poesia e especulação

André Gide era sobrinho do economista marginalista Charles Gide, que o educou. Curiosamente, no seu livro "Les Nourritures terrestres" há ecos da teoria do tio.

Eis um resumo da teoria marginalista no início do livro IV:

«O erro da minha vida foi pois não continuar longamente nenhum estudo, por não ter sabido tomar a decisão de renunciar a muitos outros. A esse preço, tudo e qualquer coisa se compraria demasiado caro, e os raciocínios não poderiam levar a melhor sobre a minha aflição. Entrar numa feira de delícias, não dispondo (graças a Quem?) senão duma soma mínima.»

[...]

«Mercadorias! Provisões! Porque não vos entregais sem resistência?»

Extraordinário é como Ménalque, o «eu poético» do poeta, resolveu a certa altura o enigma:

«Durante quinze anos, entesourei como um avarento: enriqueci-me com todas as minhas forças; instruí-me; aprendi línguas esgotadas e consegui ler muitos livros...

«Aos cinquenta anos, chegada a hora, vendi tudo e, como o meu gosto seguro e o meu conhecimento de cada objecto não me tinham feito possuidor de nada cujo valor não tivesse aumentado, realizei em dois dias uma fortuna considerável... Vendi absolutamente tudo, não querendo guardar nada de pessoal nesta terra; nem a mais pequena recordação de outrora.»

Esta é de facto a forma assumida pelo capitalismo contemporâneo, a especulação, a mais evanescente forma da alienação mercantil, o objecto, fora do circuito da produção, inteiramente despojado do seu valor de uso, transmudado em simples suporte de valor de troca, para realizar a mágica operação: do dinheiro fazer mais dinheiro. Melhor: o «eu poético» de Gide utilizou o valor de uso dos objectos, as suas propriedades concretas, como simples instrumento dessa alquimia.

Livre de todas as possessões, senhor duma fortuna considerável, poderia então gozar todas as coisas, todos os prazeres, todas as sensualidades, todos os «alimentos terrestres».

Há um poeta

Há um poeta a que poucos ligam. Chama-se Armando da Silva Carvalho. Como considero uma injustiça, aqui fica, em singela homenagem, um poema dele, tirado da recolha "Sol a Sol".

DE MANHÃ

O tamanho dum velho
Começa de manhã pelos seus sapatos.
A curva do cansaço procura
Os atacadores.
E não é ele o noivo.

A madrugada empurra.
A manhã desvia-se. Os animais da casa
Não vão obedecer-lhe.
Medem-se as intimidades
Palmo a palmo.

As paredes têm eco. Há sabedoria a mais
Nas prateleiras.
No duche disfarçado
Morre o fogo.
Os olhos da faiança estão a calcular.

Quem vive na insónia avalia
Os séculos.
Ouve o ressonar de César.
E sente sobre o peito
Os cascos dos cavalos de Napoleão.

Podia, se quisesse, tem altura que baste,
Não recear as coisas
Mas amá-las
E sobretudo obedecer à lei de ser coisa
- irmão das coisas do mundo.

Ao velho a miséria da filosofia
Não o vai deixar mais pobre
Nem mais pequeno.
Tudo é como era ontem.
O mundo não se mede aos homens.

[Nota: referências a O'Neill no quarto e quinto versos e a K. Marx na última estrofe. Pelo menos. MR]

Os Amish vão acabar por ganhar

Roubado aqui

J'étouffe dans un train vide mais plein d'une canicule, merguez-frites en camionnettes, huile bouillante entre les doigts, les narines et sous les bras. Voilà, nous y sommes, le réchauffement recommence, il ne s'arrête qu'à peine sur l'échelle humaine des perceptions. Le type qui ronfle tous les soirs a changé de place, c'est un miracle, parce que son corps à lui n'a jamais eu l'idée d'adopter les standards américains de l'évitement civilisationnel : il pue ce mec, infect. Je m'enlise en m'endormant, je lis un article sur la fin du pétrole*, une fille à moitié nue passe dans le couloir, dépensant sans compter cette énergie des corps qui pourrait faire saliver : mais il fait trop chaud. Lumière blanche, aveuglante, orages disparus, personne n'en demandait tant à l'été. D'ailleurs, personne ne demande plus rien je crois.

La femme de ma vie actuelle me disait hier soir sa préoccupation : avec toutes les conneries que je raconte, que vont devenir nos enfants ? Est-ce qu'on n'aurait pas dû éviter d'en faire ? Oui, sans doute. Continuer sans les bagages, en période de canicule et vers l'ère de la fin du pétrole, n'est pas une idée insensée. Sauf que les mômes, on pourrait pas trop s'en passer : qui nous jettera la dernière pierre une fois liquéfiés ?

A lire de plus près l'article, je comprends mieux pourquoi Airbus a vomi son gros porteur. La pénurie pointant son nez, le truc volera au maximum dix ans, avant d'être transformé en bateau dérivant à la rame sur le Pacifique, apanage des idées inutiles à la française, puisque des imbéciles et des idiotes n'ont rien d'autre à faire. Fin du tourisme intercontinental, fin du made in Taïwan, fin du fin. Resteront peut-être quelques connexions et surtout des potagers communautaires, où l'humus des bananes guadeloupéenne aura laissé la place aux râpes des carottes. (Sauf en Guadeloupe, ça va de soi).... Il n'y aura pas plus de pétrole sous terre que de poils pubiens sur les corps des actrices pornos encore jeunes. Certes, la vieille actrice porno, celle de ma génération (je n'ai pas de nom), pourrait nous rendre optimiste : chez elle, épilation oblige**, on ne compte plus l'arbre qui cache la forêt, et l'on pourrait imaginer qu'une razade hebdomadaire remplace les allumes-barbecues hors de prix chez Leclerc. Mais pour le chauffage central, c'est Landru qu'il nous faudrait. Et l'idée n'a rien d'enthousiasmant.

Il reste le solaire, mais il faut du pétrole pour produire les capteurs. Reste l'éolienne, mais les élus locaux français sont tellement cons qu'ils trouvent ça moche par chez eux. (Une centrale nucléaire, c'est beau, point à la ligne). L'uranium, évidemment, mais qu'on en consomme tous, au-delà des Tchernobyl de nos consciences, et la pénurie approchera aussi. Et puis faire rouler une bagnole au nucléaire...

Dans mon enthousiasme, je ne vois que de bons côtés à cette fin du pétrole. Fini les voyages longue distance désespérants, où l'on s'aperçoit que les Indiens d'Inde ne sont pas plus pacifistes que les flics de Mantes la jolie. Fini le couple en 4x4 au coin de la rue près de la maternelle. Ils viendront à pied, à moins d'être morts, et perdront peut-être ce superflu qui fait tant leurs ventres que leurs ambitions. Fini le CAC 40, fini le moral des ménages, fini la croissance, fini l'énorme baleine posée soudainement dans le siège d'en-face et qui croit encore que ce "surpoids" a des origines génétiques... (Elle maîtrise d'ailleurs beaucoup mieux l'astrologie que la génétique, ceci expliquant cela...). Fini la conquête de l'espace, fini la guerre moderne, il faudra s'entretuer au couteau, mais entre voisins, car seuls les peuples montant à cheval auront leurs chances de bouffer mes topinambours bio. Fini les vélos en carbone, il faut que je me dépêche.

Fini les ordinateurs en plastique, fini les bouteilles de même accabit, fini les engrais, fini l'agriculture intensive.

Les autoroutes seront d'immenses pistes cyclables dans vingt ans. Mais les routes pittoresques aussi ! Panoramas merveilleux, 35% de parts de marché pour les tandems, 10% pour les brouettes. La publicité aura disparu : que vendre sans pétrole ? Du local. Du d'ici. Du de là. Ton beurre dans mes épinards. Adieu les Américains. Plus un film produit pour de vrai à faire baver des adolescents ivres de jeux vidéo et d'une vie à laquelle personne n'osa les préparer. Virtual Potager 3D numéro 1 des ventes chez les 10-25 ans (période globale de l'adolescence actuellement, à revoir dans 20 ans).... Dans mon enthousiasme, j'oublie mon chauffage central, le coffre de la bagnole, le poids des bouteilles, les hivers rigoureux, l'économie de marché et la logistique. J'oublie mon étonnement la première fois que j'ai vu Witness, et le ridicule apparent des traditions amish.

Les Amish vont gagner la partie, Indiana Jones est un homme mort.

pizza au choix

pizza aux anchois
* Courrier International N° 764, p 38
** en français dans le texte

Economistas

Vejo uns economistas, amplamente responsáveis pela situação em que estamos (todos com altos cargos, professores de economistas, ex-ministros das finanças, etc.) a dar-nos lições sobre a situação em que estamos.

É no programa Prós e Contras, que geralmente tem um público que intervém. Neste caso, os economistas falam sozinhos. Porquê? Será porque estão acima do comum dos mortais? É de crer. Falam entre eles.

HAI CAMBIO EN GALICIA

Finalmente, e tras unha semana de espera, haberá cambio de goberno na Xunta. O futuro presidente será Emilio Pérez Touriño (PSdeG, Partido Socialista de Galicia, PSOE) con Anxo Quintana (BNG, nacionalistas galegos) como vicepresidente. O PPdeG non acadou a maioría absoluta ao conseguir tan só 15.371 votos en Pontevedra, o 49,6% do total. O PSdeG obtivo 13.518, o 43,6% e BNG 1.263, o 4,08%. Socialistas e populares case que empataron no voto da emigración e o PSdeG mesmo venceu ao PPdeG en Lugo.

Fraga prá reforma.

27.6.05

Está quase

Con el 80% escrutado, el PP obtiene cinco puntos más que el PSOE, insuficientes para la mayoría absoluta.

Fraga prá reforma!

Ah, grandes anacolutos

Soube, por amigo comum, que o Rui Amaral não está (ele está, mas de férias) pelo que me sinto como que compelido a preencher este blogue com posts.

A minha natureza tem horror ao vácuo.

Aproveito portanto o vácuo para perplexidades.

É aquela história dos casmurros. Estive para lhes escrever (proclítico) mas mando-lhes (enclítico, ainda bem que não é pós) aqui um post aberto. Aproveito para informar que peço asilo político ao QFM pois fui vergonhosamente usado por esses senhores, que, ainda por cima, na minha ausência em São Pedro do Sul, no gozo de uma merecida terapia a que a classe trabalhadora tem mais do que direito, refocilam no prazer de me acoimar membro da classe servil. Queriam chá que lhes servisse (hipérbato)? É porque o não têm.

Eu não percebo como é que esses elitistas pseudo-ontelectuais (paronomásia), sobretudo um tal Baptista (que ainda me deve o subsídio de natalidade), se permitem gozar com as figuras do discurso! É que não sei o que eles querem. Quererão enveredar pelo ínvio e escorregadio caminho dos linguistas, que a única coisa que sabem é dizer que:

1) Há uma diferença entre

O cão mordeu o homem

e

O homem mordeu o cão

2) Como o Chomski (que eu muito admiro, mas não conseguiu ir muito além das orações principais e relativas, pudera, que a coisa lá para cima é complicada),

há um foco?

Não sei se eles querem dizer isso, ao gozar (mas estarão a gozar?) com as figuras do discurso. É claro que, aqui para nós, eu sou um simples camponês das chamadas letras, aprendi na oficina, e desconfio sempre dos professores. Nessa conformidade, desconfiado como qualquer camponês, sinto-me intimidado ao comentar os comentários deles. Será que não haverá ali algum segundo sentido? Será que eu não percebi bem? É de perguntar, não?

Mas, seja como for, todas essas esdrúxulas formulações com que eles tanto brincam, são uma forma (digamos, taxonómica) de nos mostrar o caminho das pedras, quando falamos. Isto é, quando utilizamos uma língua que foi feita imperfeita para o vasto mundo que tinha de reconstruir para o comércio linguístico entre semelhantes. Se era imperfeita, toca de a violar com figuras de discurso. A própria estranheza dos nomes mostra como ainda não se conseguiu melhor forma de descrever esses mecanismos.

Este que se assina,

Groucho (proletário das letras)

Grande emocion

Começaron a contar os botos dos emigrantes de Galicia, e eu tenho cá unha fé que o Fraga bai perder.

Está mui mal, que só tem 50 por cento dos botos e precisa de 66 por cento para ganhar.

Ainda os privilégios da função pública

Um colateral meu está farto da função pública. Mas farto por dentro.

E porquê? Perguntará o leitor. Porque está farto de ouvir dichotes sobre a função pública, isto é, sobre ele próprio, lá no fundo. E diz: "Ganho X por mês. Se estivesse lá fora a vender os meus serviços ao Estado, ganharia isso num ou dois dias, que é o que cobram no mercado por certos trabalhos."

Está farto, porque chegado a uma certa idade, quase provecta, mesmo naquela borda em que dá não dá para se reformar ou pré-reformar, depende dos humores de Ferreiras Leites e equiparados, pode não pode vir-se embora.

Talvez dê o salto. Se o der, poderá gozar a chamada vida, e vender de vez em quando uns trabalhitos, e não se arreliar, acolchoado por uma magra reforma. Dadas as suas qualificações, um pouco especiais, é mais que provável que o seu serviço, não podendo contratar ninguém para o seu lugar, lhe vá encomendar os trabalhos que antes fazia (entre outras coisas), agora como privado. Toda a gente ganha, não é assim?

Quem sou eu para o criticar? Falar-lhe da nobre missão do serviço público que consiste em estar de pé a apanhar com tomates e ovos podres dos comentadores dos jornais e dos economistas de serviço? (Ou então a aproveitar-se, que é a solução aproveitada por alguns, assim assim, vários, muitos? Tipo enquanto o pau vai e vem folgam as costas?)

É o que inúmera gente nos prepara com o estúpido discurso sobre os funcionários públicos. Caros amigos, função pública quer dizer muitas coisas: engenheiros agrónomos que, para bem ou para mal, configuraram a agricultura que temos, construtores de estradas, gráficos, dinamizadores do artesanato e dos magros programas de formação profissional que ainda há (lembram-se dos escândalos que houve quando se semi-privatizou, com os fundos da CEE, a formação profissional? Pisc pisc). Funcionário público é também o professor. Funcionário público, o médico das urgências, o enfermeiro, o serralheiro que reparava os canos de abastecimento de água, o carteiro que levava à aldeia a carta, o vale do reformado.

Hoje, em nome duma modernidade retardada, vai-se vender esse património. Não obstante as experiências inglesa e francesa (Grã-Bretanha, os inúmeros acidentes nas linhas férreas, subsequentes às privatizações; França, a construção de impérios privados da água, a corrupção em grande escala, o poderio enorme desses concessionários, a água cara).

É neste contexto que não consigo perceber os discursos correntes sobre a função pública.

Ainda me recordo de um grande debate de sociedade que houve há uns tempos e consistia no seguinte: os funcionários públicos não pagavam impostos - horrível privilégio. Então, em nome da igualdade, que se fez? Ajustaram-se os salários brutos dos funcionários públicos, por forma a que os novos salários líquidos fossem equivalentes ao que antes recebiam e depois aplicou-se-lhes os competentes impostos. Ficou tudo na mesma, mas mais complicado.

Eu sei eu sei que este post não tem moral. Falta saber se a moral a tem.

26.6.05

Para ter êxito nos exames

(Estes conselhos úteis que dei à minha filha para o exame de Francês aplicam-se a qualquer disciplina da área das humanidades.)

Tu, minha filha, acalma-te, varre da cabeça a fantasia e essa preocupação de fazeres bem, ou não chegas a lado nenhum, incluindo no Francês.
Começa pela composição, que vale mais pontos, e faz como eu te ensinei: 1. Introdução, com os tópicos a), b), c)... que vais desenvolver no ponto 2. Desenvolvimento, seguindo rigorosamente os tópicos que queres explanar. Termina por uma 3. Conclusão curta e a teu gosto (moral, social... mas politicamente correcta).
Escreve frases curtas e simples, e certifica-te de que não têm erros. Se não tiveres a certeza, escreve uma frase ainda mais simples. Se possível repesca palavras, expressões e frases ligeiramente modificadas que encontres no texto de referência do exame, e assim terás a certeza de que não erras (não é plágio, é esperteza). Não interessa o que dizes, mas como o dizes.
Bem sei, minha filha, que te vais sentir burra, que vais sentir que prostituis a tua inteligência jovem e acutilante, que perdes a curiosidade e a sensibilidade até para leres o Prévert que eu te ofereci pelos teus anos, que estás a mentir-te, mas lembra-te: nos exames, como na vida, o que conta é a esperteza e não a inteligência, a curiosidade ou a sensibilidade. E lembra-te, um exame não é literatura, e a única pessoa que vai ler o que escreveste é o professor que te avalia, que nem te conhece e só quer o teu bem e o dele (mesmo assim, não te exponhas, sê fria e esperta, minha filha). Lembra-te, sobretudo: escreve só o que as pessoas estão à espera de ler, o que já foi escrito noutros lados.
Assim, minha filha, vais perder o interesse pelo Prévert, pela língua francesa e até pela leitura em geral, mas como sabes a gramática, o tempo, o espaço e a estrutura do récit, arrancas um 18 ou 19 e, embora não saibas um corno de francês, essa invejosa da doutora Carminda, lá por ter duas filhas na universidade, vai ter de engolir que tu também és uma linda menina inteligente e assisada.

Filipe Guerra

S. João pela televisão

Quem não teve oportunidade de comparecer pessoalmente no S. João do Porto, poderia usufruí-lo, com desvantagem, é certo, na televisão. A televisão, obviamente, concentrou-se no pior do S. João, a começar no Rui Rio, Roberto Leal e outros pimbas, e a acabar no tradicional martelinho de plástico.

Filipe Guerra

Poema de Safo

Como, depois de muitas buscas, não encontrei senão a versão inglesa truncada, aqui vai a sensacional notícia nessa língua. Um poema completo de Safo acabou de ser descoberto.

Vão aqui (se fazem favor, claro).

O poema é este, na versão de Martin West, que o apresenta no Times Litterary Supplement:

"[You for] the fragrant-blossomed Muses' lovely gifts
[be zealous,] girls, [and the] clear melodious lyre:

[but my once tender] body old age now
[has seized;] my hair's turned [white] instead of dark;

my heart's grown heavy, my knees will not support me,
that once on a time were fleet for the dance as fawns.

This state I oft bemoan; but what's to do?
Not to grow old, being human, there's no way.

Tithonus once, the tale was, rose-armed Dawn,
love-smitten, carried off to the world's end,

handsome and young then, yet in time grey age
o'ertook him, husband of immortal wife."

Words, words, words

Paroles, paroles, paroles...
(Dalida)

http://linux1.intershop.de/~wolf/Portugues/portdict/portugues.html

Isto é o que dá quando se introduz a seguinte pesquisa no Google:

«A função poética projecta o princípio da equivalência do eixo da selecção sobre o eixo da combinação»

Inspirado por certos casmurros vacilantes.

25.6.05

Say it with a ukulele

FOG

Say it with a ukulele

"Diz-lhe isso com um cavaquinho..."
O rouco fonógrafo grita;
Meu Deus, diz-me como o direi,
Se a solidão já me habita.

Com os acordeões que espremem,
Uns pobres, cautelosamente,
Clamam sem cessar pelos anjos
E seus anjos são tormento.

Os anjos abrem suas asas
Mas a névoa a terra cobre;
Deus louvado, que nos pilhavam,
As pobres almas como tordos!

A vida é fria pescadora;
- Assim vives? Que quer's que faça?
São tantos os que naufragaram
No fundo do mar oceano!

Os bosques parecem corais,
A que a cor tivesse fugido,
Os carros são como esses barcos
No fundo do mar esquecidos.

"Diz-lhe isso com um cavaquinho..."
Palavras, palavras, palavras?
Amor, diz-me onde o teu altar,
Que já me vai cansando este adro.

Ah! Fora a vida em linha recta,
Que bem levávamos a vida!
Mas nosso fado assim não quer,
E há que dobrar certa esquina.

E onde essa esquina? Quem o sabe?
Silêncio! A bruma não fala.
Iluminam a luz as luzes,
Trazemos nos dentes a alma.

Onde encontraremos consolo?
O dia trouxe a noite escura.
É tudo noite, é noite tudo,
Mas sempre encontra, quem procura...

"Diz-lhe isso com um cavaquinho..."
Recordo as unhas; e o verniz,
Como brilhava ao dar-lhe a luz!
E ouço-a ainda a tossir.

Giórgos Seféris
(Tradução: Manuel Resende)

Automóvel

AUTOMÓVEL


Na estrada, abraço de compasso,
Dois braços, um apelo,
Dedos de vento no cabelo,
Mil milhas no regaço,

Vamos os dois livres, sem cruz,
Chibata no olhar langue;
São­-nos enfeites alma e sangue,
E vamos nus! Nus! Nus!

...Nesse leito de alto espaldar
De almofadas de penas,
Ao longe fogem nossas penas,
Qual peixe à beira-mar.

E nos dois braços estendidos,
Apenas corpos, vamos,
Pelos dois lados, em dois ramos,
Corações repartidos.

Giórgos Seféris
(Tradução: Manuel Resende)

São João III

FOGUEIRAS DE SÃO JOÃO


O nosso destino, chumbo fundido, não pode mudar,
Não pode vir a ser nada.
Verteram o chumbo na água por sob as estrelas
e que se acendam as fogueiras.

Deixa-te estar nua diante do espelho, à meia-noite - e hás-de ver
Ver o ser humano a passar no fundo do espelho
O ser humano dentro do destino que governa o teu corpo
Dentro da solidão e do silêncio do ser humano
Da solidão e do silêncio
E que se acendam as fogueiras.

Esse instante em que terminou um dia e não começou o outro,
Esse instante em que se deteve o teu corpo
E que a partir de agora e no princípio governou o teu corpo
Terás de o encontrar,
Terás de o exigir para que o encontre pelo menos
Alguém que há-de vir quando tiveres morrido.
São os jovens que acendem as fogueiras e gritam
Diante do fogo da noite quente.
(Talvez nunca existisse fogo que não o acendesse algum jovem, ó Eróstrato!)
E lançam sal nas chamas para que crepitem
(De que estranho modo nos fitam subitamente as casas e os fornos dos homens, quando as acaricia certo reflexo).

Mas tu que conheceste a alegria das pedras sobre a rocha batida pelo mar,
Na noite em que a serenidade desceu
Ouviste ao longe a humana voz da solidão e do silêncio
Dentro do teu corpo
Nessa noite de São João,
Quando se apagaram todas as fogueiras
E estudaste a cinza sob as estrelas.

Giórgos Seféris
(Tradução M. Resende)
Nota: Na Grécia, no São João, deitava-se (não sei se o costume se mantém) chumbo derretido numa bilha de água e adivinhava-se o futuro pelas formas que o chumbo fazia ao solidificar.

23.6.05

S. João II

Sobre o post anterior, queria acrescentar uma ou duas coisas.

Gostaria de acreditar nisto: a diferença entre o São João do Porto e as marchas populares de Lisboa, é que o primeiro resulta verdadeiramente de tradições antigas, pagãs e genuinamente populares, enquanto as segundas foram invenção do António Ferro, propagandista do Salazar, para entreter as massas urbanas.

E gostaria de acreditar nisso porque sou do Porto.

Uma das coisas que mais me faz pensar que tenho razão é o carácter absolutamente desorganizado e aparentemente sem sentido do São João do Porto. Pura e simplesmente, as pessoas vêm para a rua a festejar, sem qualquer directiva: elas são a festa, não vão ver a festa. Não é preciso polícia, nada, nem ninguém a comandar.

[Desisti por exemplo de ir à passagem de ano em Bruxelas, porque há sempre traulitada.]

Haverá um teste a tentar: qual a percentagem de Carneiros e Peixes (signos) no Porto? Apostaria que é superior à do resto do país.

22.6.05

Mistérios

Na minha qualidade de emigrante, passados os primeiros tempos de perplexidade e de habituação a novos estilos de vida, passei a interrogar-me consistentemente (eh eh) sobre um mistério da vida portuguesa.

Como é possível (sobre)viver neste país, com preços europeus e salários portugueses?

Pouco a pouco, percebi.

1) Boutique C. Boutique C? Sim, boutique C. Para além dos hipermercados e centros comerciais, há as feiras espalhadas por esse país, onde a troco de um dois três euros se compram camisas lacoste, etc., de contrafacção fornecidas pelos chineses e vendidas pelos ciganos (Boutique C: stands dos ciganos).

2) CP. CP? Sim, CP. Casa dos Pais. Aí onde se vive até aos vinte e tal, trinta anos. Numa certa altura, não sei se ainda é assim, a CP era comprada em nome dos filhos ao abrigo do «crédito jovem».

3) "Privilégios" ocultos. Você vai ganhar pouco, caro amigo. Mas olhe que tem assistência médica melhor, nuns casos, olhe que tem uma carreira regulamentada, noutros casos, etc., etc., etc.

Subitamente, há um défice de quase 7%, escondido pelo Santana Lopes. E toca de invocar repentinamente os privilégios, a justiça social.

Como quem diz, os culpados são vocês, horríveis privilegiados.

Daqui a pouco, vão eliminar as boutiques C, as CP vão falir por causa das taxas de juro, os "privilégios" vão acabar

e

este país vai transformar-se num imenso «arrastão».

Entretanto, temos um Presidente da República furioso por não haver capital de risco para apoiar as novas economias. Que se esquece de dizer o que foi o circo, em 1999 e 2000, do capital de risco nos EUA, o circo das novas economias, empresas de ar e vento que rebentaram logo a seguir ao 9 de Março de 2000, dia do meu aniversário, em que o Nasdaq pela primeira vez ultrapassou o índice 5000, para logo cair a pique (nunca mais recuperou e está hoje a 2000).

Eliot revistado

"Faced with that literary troublemaker T.S. Eliot, a York University academic called in the FBI and now claims to have cracked the case of how The Waste Land was written."

Terapias de auto-ajuda


aguasfurtadas, Revista de Literatura, Música e Artes Visuais.
Número 7 já disponível nas boas livrarias. E nas outras também.

Abrir aspas. Fechar aspas

"O meu avô afiava os lápis com uma faca. E tudo o que sabia escrever era o próprio nome, muito devagarinho, para não se enganar no desenho de cada uma das letras."

Fim de citação.

Povo que levas com o Rio


Inauguração da Marina do Freixo, no dia 29 de Janeiro de 2005.

"Os níveis de contaminação das águas do Rio Douro, que de acordo com as últimas análises estavam 122 vezes acima do limite, deverão agravar-se nos próximos meses devido à situação de seca, disse o cientista Bordalo e Sá. (...)
O investigador apontou como um dos locais 'mais dramáticos' em termos de poluição das águas a zona onde está instalada a Marina do Freixo, no Porto. 'A água em volta à Marina do Freixo apresenta um milhão de coliformes fecais', disse, considerando tratar-se de 'um valor inadmissível, porque o máximo recomendável para banhos no rio é de 100'.
Criticando a localização da marina, por ter sido construída numa curva e na saída de dois rios 'extremamente poluídos' (Tinto e Torto), Bordalo e Sá frisou que 'os níveis de contaminação deterioram de forma dramática a utilização da marina, além do mau cheiro que provoca'."

Comércio do Porto de ontem.


É pena. Mas tínhamos razão.


"Sofia". Fotografia de André Sousa Martins.

21.6.05

O fantasma ataca de novo

Constituição dos Estados Unidos da América:

"[...] Section. 8. The Congress shall have Power [...] Clause 8: To promote the Progress of Science and useful Arts, by securing for limited Times to Authors and Inventors the exclusive Right to their respective Writings and Discoveries; [...]"

Tratado Constitucional da UE:

N.º 2 do artigo II-77.º (na Carta dos Direitos Fundamentais)
«A propriedade intelectual é protegida».

Há quem se inquiete com esta formulação, por causa de exemplos anteriores muito deselegantes.

Declaração peremptória dirigida a todos os importantes

Saibam os pertinentes leitores deste blogue que não falo em função de esquemas pré-definidos, mas em função de uma experiência de vida. Sou eu próprio ex-funcionário público, embora de tipo especial.

Também no meu serviço, por diversas razões que, não são, no caso, baseadas na especiosa justiça social, também no meu ex-serviço vão aumentar a idade da reforma para os 65 anos. (Porque é o que está a dar. Nuns sítios por isto, noutros por aquilo.) Porém, ao mesmo tempo, introduziram, por motivos outros que têm a ver com a contenção orçamental, um programa ad hoc para dar pré-reforma, excepcionalmente, a um grupo de pessoas, entre as quais este vosso servidor.

As justificações invocadas (as pessoas com mais de 55 anos dificilmente se adaptam a estes tempos modernos, de alta tecnologia e internet e tal) eram completamente estranhas ao verdadeiro motivo. Calhou-me a pré-reforma. Visto isto, acham que acredite nesta gente, e nas razões que dão? Era o que me faltava.

Estas argumentações avulso dão-me vontade de rir e de vomitar, sucessivamente.

É que a razão de fundo é outra: reduzir o Estado nas suas funções sociais (mas expandindo o Estado nas suas funções policiais e militares). Poupar. Porque, dizem, não dá, cada vez há mais velhos. Etc.

Esquecem-se de nos dizer que cada vez é maior o fosso entre os de baixo e os de cima. E, em Portugal, estamos a atingir exageros estratosféricos. Com os salários miseráveis que vejo, vejo também o preço das casas e das rendas, e que os gestores ganham tanto como em qualquer país europeu. Essa é que é essa.

Onde estão os frutos do chamado progresso, do aumento da produtividade do trabalho que é hoje muito superior à de vinte anos atrás? Onde? Onde?

E outra coisa: quanto mais um país "evolui" (constrói estradas, pontes de Rio Tinto e alhures, universidades, escolas, porque precisa de mão-de-obra qualificada, não é assim?) mais precisa de fundos. É matemático. Onde ir buscá-los? Aos impostos, caros senhores. Pagos por todos, os de baixo e os de cima (e estes mais do que aqueles: no pós-guerra, nos EUA, havia taxas marginais de 90%). Só que os de cima não querem. Ai o meu rico dinheirinho...

Não, esta conversa não é a dum atrasado de Maio de 68. Esta conversa poderia ser dita, menos truculentamente, por Keynes, que não era um social-democrata (nunca pertenceu ao Partido Trabalhista), mas um reformador burguês e um grande economista, um dos poucos que merece respeito.

Mas hoje em dia, até Keynes está à esquerda do Partido Socialista. Isso é que é a verdade. Até Keynes passa por perigoso revolucionário, enquanto José Sócrates anda a catar pequenos privilégios no caixote do lixo da História.

Época de exames

Desculpem esta intromissão pessoal e sentimental. A minha filha saiu para fazer um exame importante do 12º ano; se o falhar, não entra na universidade, para o curso esquisito que escolheu. A rapariga, nestes últimos dias, nem namora e quase não dorme, desleixou a verve satírica e rebelde, não exige suplementos de mesada, ficou outra, coitadinha. A mãe dela, de tantos nervos, tornou-se insuportável. Eu também. Nesta espera de duas horas que dura o exame, o que é que eu fiz? Acendi uma velinha à Nossa Senhora. Sem ironia. Sou ateu activo e luto sobretudo contra as memórias salazaristas, das quais coloco à cabeça todas as Nossas Senhoras que nos têm drogado. No entanto, acendi uma velinha, e cuspo na cara de quem me acusar de incoerência. Explico: lembro-me dos meus jovens exames e das velinhas que as minhas velhas tias galegas acendiam para que Nossa Senhora me abrisse a «memória» enquanto durava o exame; elas até rezavam, e os meus tios, de cabeça baixa, pisavam o sobrado com mais respeito. Então, como se pode ironizar contra pessoas que, de tanto nos quererem bem, utilizavam todas as armas ao seu alcance, incluindo a velinha, para nos ajudar nos exames? Somos animais? E mais: se a greve dos professores prejudicar o exame da minha filha ou, de qualquer outro modo, lhe aumentar o sofrimento, sou contra a greve dos professores. Em tempo de exames, tornamo-nos sentimentais.

Filipe Guerra

Um verso

"Os mundos giram como mulheres velhas."

T. S. Eliot, Prelúdios (IV)


Teun Hocks, "Sem Título", 2000.

Geração viageira

"Tenho a impressão de que a minha geração é a primeira geração viageira da literatura nacional. Claro, por ser uma geração de contumazes viajantes não significa que somos melhores que os escritores que não viajavam ou viajavam pouco. Machado não saiu do país. Nem Mário de Andrade. Drummond só foi ali a Buenos Aires e voltou correndo. Vai ver que se tivessem viajado seriam ainda melhores. Mas não é certo: se a viagem por si motivasse a arte e a ciência, os pilotos e as aeromoças ganhariam o Prêmio Nobel."

Affonso Romano de Sant'anna

Pulido Valente

Valente Pulido adopta a táctica do seleccionador de bancada: diz sempre mal. Se a Selecção ganhar, ninguém se lembra. Se perder, diz: «Eu bem tinha dito.»

É fácil, é barato, dá milhões.

A Vã Glória de Mandar

Estou eu aqui no cantinho, quer dizer, no quentinho e pumba aparece-me o Manoel Doliveira em franciú.

20.6.05

Os Territórios de Quixote no Porto



"Os Territórios de Quixote." Exposição de fotografia de José Manuel Navia, no Centro Português de Fotografia, até ao dia 21 de Agosto.

Anna Grigorievna Dostoiévskaia



Foi a segunda mulher de Fiódor Mikhailovitch Dostoiévski, o profeta da Rússia, o antiliterato (como Tolstói), o homem sincero que seguia os movimentos das almas até ao fim, até à descida aos infernos, que nunca mentia, que assumia as suas fraquezas e as dos outros até não aguentar mais, até à abjecção, que punha tudo no papel, ora com um génio luminoso, ora com uma mediocridade comovente. Só uma Anna missionária e amante podia salvá-lo. Anna tinha 20 anos e foi encontrá-lo com 45, viúvo, pobre, doente (no auge da epilepsia), sozinho, rejeitado, enganado, mal pago (ganhava 150 rublos por caderno impresso quando Turguénev e Tolstói ganhavam 500), e mesmo assim era o amparo da família do falecido irmão (e responsável pelas dívidas deixadas por este). Anna, estenógrafa, começou por ajudá-lo a terminar a tempo O Jogador (que ele lhe ditava) e evitar assim que Fiódor Mikhailovitch se enredasse ainda mais na teia que lhe tecia um editor vigarista. Depois casou com ele e foi o seu anjo-da-guarda durante os 14 anos que o escritor ainda viveu. Ajudou-o a escrever os seus livros e deu-lhe os filhos por que ele ansiava. Soube compreender o vício do jogo e o ciúme doentio (ambos compulsivos) do marido. Amava-o infinitamente. «É certo que eu amava infinitamente o meu marido, mas não com aquele amor carnal ou apaixonado que acontece entre esposos da mesma idade; o meu amor era puramente cerebral, ideal. Tratava-se mais da adoração por um homem de grande valor moral diante de quem eu me inclinava. O meu coração enchia-se de enorme piedade por quem tanto havia sofrido, pelo ser privado de alegria e de felicidade que ele era, rejeitado por parentes que lhe deviam tudo, e por quem ele, no entanto, toda a vida mostrou grande bondade.» (Excerto de Memórias, de Anna Grigorievna Dostoiévskaia, publicado muitos anos depois da morte de Dostoiévski, a sair brevemente em tradução portuguesa). Tudo isto, a que tentei dar aqui algum esmero literário (como diria Dostoiévski), disse-o em linguagem de café de praia a um amigo, que me ripostou, à vista dos corpos na areia: «Amor não carnal, adoração, humm... Ainda bem que as memórias dela saíram depois da morte de Dostoiévski. Que homem, entre os 40 e 50 anos, gostaria que uma mulher tivesse pena dele e o amasse desta maneira?» Nós, leitores de Dostoiévski, aqui na praia pejada, é que não temos nada com isso, e em coro deveríamos gritar: obrigados, Anna Grigorievna, por lhe ter deitado a mão amante quando ele estava tão mal que já nem tinha vontade de escrever! Anna Grigorievna Dostoiévskaia morreu em 1918, quase trinta anos depois do marido.

Filipe Guerra

Ciacconas, Bergamascas & Folias



Manhã de segunda-feira. Pilhas de trabalho no escritório. Longa semana em perspectiva. Rir com um olho, chorar com o outro.

Ora fazem o favor de desculpar

Ainda mais uma vex não falo de poesia.

Mas acontece que, en Galicia, Fraga perdeu a maioria dos botos, pola primeira vez. É munto claro: en 2001, el tube 51,6 por cento dos botos. Nas botações dontem tube 44,9 por cento dos botos.

Claro que os socialistas e os nacionalistas galegos tiberam xuntos a maioria dos botos, mas non tiberan a maioria dos escanos, pola forma da lei eleitoral no Estado Espanhol.

Neste momento, estamos a esperar da botação dos emigrantes. Como bão a botar os emigrantes na Argentina, na Bélgica, etc.? Grande incógnita, porque o Fraga só necessita um escano para apanhar e sobrepasar os socialistas e os nacionalistas.

Eu cruzo os dedos da mão direita. E da mão esquerda, também.

Nota: escrito em galaico-português de Santarém (variante III a), mas com um grande abraço ao Filipe Guerra. Talvez agora o lh vença o ll, sempre numa perspectiva internacionalista.

Galicia Portugal Unidade (inter)Nacional.

Anedota racista, mas que não ofende, dado o seu alto teor linguístico:

«Habla usted francês?»
«Yes.»
«Eso non es francês, es inglês.»
«Carago, enton falo dous idiomas.»

19.6.05

Soundbytes

Deu-me para brincar com os casmurros.

Alegoria: 1. Imagem careta e laboriosa com fundo moral.

Alentejo: 1. O único sítio do país onde as aldeias têm passeios.

Alqueva: 1. Estupidez comprovada pela prática prática. 2. Quero ver onde vão gastar a água. Campos de folg? Complexos turísticos? Desportos radicais?

Altermundialismo: 1. A ver. Ponho na agenda electrónica, para conferir em 2010.

Alves, Clara Ferreira: 1 Não conheço.

Amazónia: 1. Brincai, brincai.

América: 1. Continente que alguns confundem com um país.

Americanos: 1. Ver verbete anterior. A conferir: os espanhóis praticaram um genocídio directo; os portugueses, um genocídio indirecto. Mas onde estão os índios do hemisfério norte, quando comparados com os do hemisfério centro e os do hemisfério sul? Estes dois hemisférios são piada, claro.

17.6.05

Novidades literárias


Jornal gratuito "Metro", edição de hoje.

Moral da história

Raras são as histórias que têm uma moral. A começar pela própria História.


Comentário de Zé Povão a este post:

"Zé Povão said...

Algumas vezes tem. Algumas vezes, pelo menos. Exemplos:
- A tolice feita pelos vencedores da I Guerra Mundial com o Tratado de Versalhes. Moral: 'Quem semeia ventos colhe tempestades';
- A estupefacção de alguns 'progressistas' ocidentais ao 'descobrirem' (vai também entre aspas') que, afinal, a URSS não era o Sol da Terra, mas uma feroz ditadura. Moral: 'Nem tudo o que reluz é ouro';
- As invectivas frequentemente hipócritas de responsáveis do PS e do PSD nesta nossa triste III República. Moral: 'Alfaiate mal vestido, sapateiro mal calçado';
- As actuais desculpas do Vaticano em relação a vários desmandos ( e estou a ser extremamente benevolente!) que a Igreja praticou ao longo da História. Moral: 'Faz o que eu digo, não faças o que eu faço';
- As esperanças, cedo transformadas em desilusão, havidas durante a nossa I República. Moral: 'A sorte não dá, só empresta';
- A escolha de Santana como líder do PSD. Moral: 'antes que cases, vê o que fazes'."

(Retirado da caixa de comentários)

16.6.05

Revolução na Revolução

Estava decidido a entrar em ano sabático, a esconder-me debaixo dos lençóis, por muitas e diversas razões, mas o Osvaldo Manuel Silvestre e o Groucho vieram incomodar-me.

Então resolvi escrever este mail ao Groucho.

Caro Groucho:


É claro que as minhas observações eram e não eram objecções. Diz muito bem: eram mais complementos.

Se me permite mais deambulações, que se destinam a fazer-lhe perder tempo e a servir de terapia para mim, pois tenho pouco com quem falar a sério sem medo de dizer asneiras e sem desencadear acrimónias de tarados.

Veja esta.

Nós somos filhos do iluminismo, neste sentido (pelo menos eu sinto isso): pertencemos àquela massa que o iluminismo educou. E temos o direito de julgar a nossa herança, o património que nos foi legado. Inclusive de o renegar.

Nesse sentido, a poesia, eterna cornuda da História, tem algumas contas a pedir à vida quotidiana e mesmo até a muitos poetas e ainda à própria poesia, tantas vezes adorno de poderosos.

Sobre o movimento operário e a cultura. Ao desenraizar as massas camponesas do seu habitat multissecular, o capitalismo criou massas urbanas que tinham perdido grande parte da sua cultura antiga e não tinham tido tempo de criar uma nova. Nas cidades, só os artesãos guardavam uma memória. Nesse sentido, a acção das vanguardas operárias (não só comunistas, mas também anarquistas e sociais-democratas) foi, ironicamente, o exemplo mais puro de iluminismo: numa página em branco, dizia o Mao, que não tem a ver com esta tradição, mas para a citação serve, pode escrever-se o que quisermos.

Mas não se julgue que o povo trabalhador é apenas massa amorfa que recebe a luz do alto. Se assim fosse, não se explicariam certas formas de cultura popular que se desenvolveram nos bairros populares das cidades e, inclusive, as inúmeras associações inesperadas saídas das massas trabalhadoras: os movimentos esperantistas, naturistas, vegetarianos, etc.

Por outro lado, o capitalismo não é só economia. E os aparelhos dominantes também procuram influenciar a cultura das massas populares. Institui-se assim uma luta pelo coração e pela cabeça das massas populares.

O carácter ditatorial e burocrático dos partidos estalinistas resulta talvez parcialmente do choque dos iluminados iluminantes com esta realidade: afinal, não estão perante uma página em branco.

Saltando para outro aspecto diferente, mas aparentado: não creio que Marx fosse um iluminista ortodoxo. Porque quis ele dissolver a Associação Internacional dos Trabalhadores? Sim, havia divergências com os anarquistas, etc., mas podia ter insistido numa cisão e recriar uma seita vanguardista, para levar as luzes às massas; houve tantos que fizeram isso! Mas ele não o fez. (Repare-se que os anarquistas continuaram com a Associação Internacional dos Trabalhadores que ainda hoje existe de nome).

É claro que é difícil explicar isto aos marxistas ortodoxos, mas não a si, caro Groucho!

Por outro lado, confesso-lhe que tenho aqui o coração aos saltos. Sabe você que há aí uma revolução em curso? Pois é como lhe digo, embora não venha nos jornais.

E não é uma revolução clássica. Porque, aqui entre nós que ninguém nos ouve, a Revolução Russa e a Revolução Chinesa e a Revolução Cubana foram revoluções excêntricas, revoluções resultantes de reivindicações que pouco tinham a ver com o cerne da dominação: as relações quotidianas de trabalho e de vida, mas com circunstâncias extravagantes, decorrentes da exacerbação dos humores da história (guerras, ditaduras bananeiras), decorrentes dos efeitos periféricos da dominação. Lenine chamou a isso "o elo mais fraco do imperialismo".

A revolução boliviana, é dessa que falo, aproxima-se mais do cerne da questão, embora venha ainda matizada de contornos nacionais e latino-americanos e étnicos (os índios, que os espanhóis massacraram, mas afinal menos do que os americanos do norte); é uma revolução pelo controlo dos recursos naturais (petróleo, gás, água). É uma revolução não dirigida por um partido mas por várias e diversas organizações, está a colocar as suas reivindicações ao nível do político, articulando-as com o problema da democracia. Já deitou abaixo dois presidentes, mas a hidra tem hesitado em levar a violência (pacífica) ao ponto de destruir o poder político existente. Está a tentar pressionar os sucessivos presidentes a convocarem uma assembleia constituinte, por forma a substituir o parlamento actual, que nitidamente não representa o povo, por outra organização política, mais consentânea com o querer do mesmo povo.

Não estou lá, e desconfio sempre dos relatos, mas quer-me parecer, pelo que li, que há ali uma permanente discussão nas mais diversas assembleias e os chefes foram chamados à razão diversas vezes. Vários movimentos proclamaram recentemente tréguas, porquê? Porque temem substituir uma democracia corrupta por uma ditadura. Mas sabem que é preciso encontrar uma saída, uma forma de expressão democrática que reflicta verdadeiramente o querer do povo - e desconfiam do «diálogo» mediado pela igreja católica.

Este tipo de organização, em que não se trata já de transmitir a consciência da história às massas trabalhadoras, mas de criar uma consciência colectiva do conjunto dos indivíduos dessas massas pela discussão entre iguais (em assembleias onde os partidos continuarão a ter o seu lugar), é talvez o grande contributo do movimento altermundialista para a História com agá grande. Sem que eu queira sacralizar o movimento altermundialista, tão contraditório, tão imperfeito, como o partido do trabalho do presidente Lula.

Desculpe lá estes comentários descosidos. São coisas que me vêm à cabeça assim à noite.

Poemas de Oscar Wilde. Numa tradução inédita de Margarida Vale de Gato

Quarto e último poema

FANTAISIES DÉCORATIVES

I.
Le Panneau

Sob a sombra que baila da roseira
Há uma garotinha de marfim
Que arranca as folhas róseas e perladas,
Com unhas verde-água de jade.

As folhas rubras caem sobre o húmus,
As folhas brancas, uma a uma, entornam-se
Por uma taça azul, aonde o Sol
Tal um dragão de ouro se retorce.

As folhas brancas pairam pelo ar,
As folhas rubras descem langorosas,
Algumas sobre seu robe amarelo,
Algumas sobre seus negros cabelos.

E toca um alaúde de âmbar, ela canta,
E quando canta, um grou de prata
Começa a afagar seu papo roxo,
Com asas de metal a cintilar.

Toca um alaúde de âmbar, e brilha,
E lá do bosque denso onde se deita,
O seu amante, com olhos de amêndoa,
Espreita os gestos dela com deleite.

E ela solta então, de susto, um grito,
Começam a romper delgadas lágrimas,
Pois um espinho feriu com sua flecha
A rósea pele na concha do ouvido.

E agora ri em estrídulo alvoroço
Por tombar uma pétala de rosa
Aonde o cetim flavo deixa ver
A flor de veio azul do seu pescoço.
Com unhas verde-água de jade,
Há uma garotinha de marfim,
Sob a sombra que baila da roseira,
E arranca as folhas róseas e perladas.

II
Les Ballons

Contra estes densos céus de azul turquesa,
Mergulham como luas de cetim
Balões cheios de luz e de leveza,
Tais borboletas pairam, como seda.

E giram ao sabor da brisa esparsa,
Sobem, piruetam, como num baile,
Flutuam, perlas raras de cristal,
Caem, levitam, tal argêntea prata.

Agora ao rés das folhas se seguram,
Em pose graciosa, teatral,
E cada um é pétala de rosa
Que em corda de gaze se pendura.

Agora chegam às mais altas copas,
Como globos de ametista fina,
Opalas vagueando ao encontro
Dos galhos de rubi da lima.

Tradução de Margarida Vale de Gato

Nota: texto retirado da antologia Poems, a publicar em breve pela Relógio d'Água.


S. Brett Kaufman, "Portrait of Oscar Wilde and Lord Alfred Douglas", 1996.

Será que nunca mais se acaba com isto?

Há muito que anunciaram a morte do comunismo. Intelectual, comunicador, fazedor de opinião que se prezem passaram a poder ser de toda a esquerda menos da comunista. O comunismo não só foi anunciado como morto mas também com uma memória passada de moda; foram desaparecendo paulatinamente dos espíritos mais inteligentes os conceitos de «povo», «classes», «luta», e quem nisto não alinhasse era tolo: o comunismo, finalmente, morrera. Agora morreram Vasco Gonçalves e Álvaro Cunhal; pois bem, e o que tinham preparado para a ocasião os espíritos mais inteligentes? Tinham preparado muita abertura, muita compreensão, muito humanismo, e também muito paternalismo superior, como só é possível ter por homens mortos representantes de uma coisa morta, recambiados para história morta. Era como se a árvore vermelha tivesse sido derrubada e desarreigada e agora apodrecessem de vez os seus últimos frutos. Na tarde quente fui ao enterro de Cunhal e vi tanto povo junto como já não via há décadas. O povo, pelos vistos, não morrera com o comunismo e estava ali com um espírito de pesar mas, ainda mais, de luta. A tarde ensombreceu, era como se enterrassem o sol. Aquilo era tão forte que, afinal, pensando bem e sentindo bem, o comunismo não morreu, há outras árvores vermelhas por esses pomares adentro. À noite vi nas televisões os espíritos mais inteligentes falando de Cunhal. As palavras moles que diziam não eram novas, mas a expressão sim, como se soubessem do enterro e concluíssem que, afinal, os mortos não morreram. Como se vissem um morto: uma expressão de espanto, perplexa, aturdida, embora inteligente como sempre.

Filipe Guerra

Ideal para estes tempos de seca


aguasfurtadas, Revista de Literatura, Música e Artes Visuais.
Número 7 já disponível nas boas livrarias. E nas outras também.

15.6.05

Poemas de Oscar Wilde. Numa tradução inédita de Margarida Vale de Gato

Terceiro poema

IMPRESSION

I
Le Jardin

Cai a taça do lírio encarquilhada
Em torno do ouro em pó de sua haste,
E o derradeiro pombo arrulha e chama
Lá das faias que há nos campos vastos.

O girassol galhardo, leonino,
Pende do caule, negro e sem semente,
E, ao vento, no caminho do jardim,
As folhas mortas tombam tenazmente.

Folhas de alfena brancas como leite,
Sopra-as a brisa, empurra-as para a neve;
Como seda que em trapos foi desfeita
As rubras rosas jazem sobre a relva.

II
La Mer

Pelas enxárcias paira branca bruma:
A lua, olho feroz de um leão,
Brilha selvagem neste céu de chumbo
Sob uma juba de douradas nuvens.

Ao leme, o piloto embuçado
É uma sombra apenas na penumbra;
E na casa das máquinas que pulsam
Polidos cabos de aço longos pulam.

Há traços da tormenta escorraçada
Nesta enorme ogiva soluçante,
E os finos fios louros da espuma
Nas ondas são de renda desmanchada.

Tradução de Margarida Vale de Gato

Nota: texto retirado da antologia Poems, a publicar em breve pela Relógio d'Água.


Oscar Wilde. Gravura de Carlo Pellegrini, 1884.

Exit

Os estudantes queixam-se da falta de saídas profissionais. Os profissionais queixam-se simplesmente da falta de saídas.

Há uma data de gente a viver neste corredor

"Cunhal nunca compreendeu o soneto de Camões que diz 'mudam-se os tempos, mudam-se as vontades'", disse Mário Soares ao Público de ontem.

As coisas extraordinárias que Soares sabe sobre aquilo que Cunhal não sabia. Coitado do Cunhal. Não era um intelectual a sério. Há que ter compaixão. Ele não percebia muito bem as coisas. Cunhal não sabia fazer balanços, não percebia nada do que se estava a passar com a história. Muitos dizem que ele se deixou "ultrapassar pela história". Uma espécie de "rara avis in terris" a quem deram demasiada importância. Felizmente, temos o Soares para nos explicar as coisas tal como elas são ou não são. Soares, pelo contrário, compreende tudo muito bem. Ele, sim, esteve sempre do lado certo da história. Ele sabe do que fala. Quer dizer, ele lá sabe do que fala.

Mesa mais ou menos redonda com tradutores

They've been indispensable since the dawn of literature, laboring over the masterpieces of others, coaxing them into approximation. Four gifted translators-into-English of four very different works gave generously of their time for this roundtable, mostly concerning their experiences with a recent book.

Aqui.

14.6.05

Poemas de Oscar Wilde. Numa tradução inédita de Margarida Vale de Gato

Segundo poema

SINFONIA EM AMARELO

Como amarela borboleta
Cruza a ponte a diligência;
Um transeunte, intermitente,
Surge tal mosca inquieta.

Contra o molhe se arremessam
As lanchas de feno amarelo,
E a bruma vela o cais, um selo
Ou lenço amarelo de seda.

Amarelas, folhas fanadas
Caem dos olmos de Temple;
Verde, a meus pés, jaz o Tamisa
Tal vara de jade estriada.

Tradução de Margarida Vale de Gato

Nota: texto retirado da antologia Poems, a publicar em breve pela Relógio d'Água.


Oscar Wilde. Aguarela de Henri de Toulouse-Lautrec, 1895

13.6.05

Poemas de Oscar Wilde. Numa tradução inédita de Margarida Vale de Gato

Primeiro poema

Estas composições poéticas pouco conhecidas de Oscar Wilde (1854-1900) agrupam-se num conjunto de "impressões", que, derivadas de uma estética da sugestão cara ao simbolismo, se aproximam também da máxima do prefácio a O Retrato de Dorian Gray: "O que a arte espelha realmente é o espectador e não a vida." Assim, o movimento dos versos, encavalgado, transporta-nos nas pinceladas que não nos oferecem o quadro todo, mas pontos fugazes que estimulam a nossa imaginação da cena. É também notável o modo como nelas se procura o cruzamento plástico de várias sensibilidades artísticas, como a música, a pintura e as artes de decoração, inovando-se a técnica descritiva com efeitos que por vezes parecem prenunciar já o imagismo anglo-saxónico surgido na segunda metade do século XX.

Textos retirados da antologia Poems, a publicar em breve pela Relógio d'Água.

IMPRESSION DU MATIN

O Tamisa nocturno, azul e ouro,
Mudou-se em cinzenta Harmonia,
Uma barca de feno ocre
Desceu do cais, e, baça e fria,

A bruma amarela pousou
Em pontes, casas; de verdade
Eram como sombras; St. Paul
Era uma bolha na cidade.

Depois de repente o clangor
Do acordar; ruas trilhadas
De carroças; e no fulgor
Das telhas uma ave trinava.

Mas, branca e solitária, uma mulher,
Beijando-lhe a cabeça a luz desperta,
Bebia ainda o gás dos revérberos,
A boca como fogo, o coração de pedra.

Tradução e nota de Margarida Vale de Gato


Oscar Wilde. Fotografia de Napoleon Sarony, 1882.

Eugénio (1923- )




















Fim-de-semana prolongado

Demasiado prolongado na morte.

Memórias de um leitor

Num pequeno recanto de uma casa meio encoberta por duas amoreiras, havia naquele tempo uma estante de pinho, tão pequena que nela mal cabiam os livros que continha. Com seis anos feitos havia pouco tempo, eu mal sabia ainda ler. Ia olhando contudo para aquele recanto, enquanto D. Maria Guilhermina tentava avivar a minha atenção com a sua voz calma, que jamais sairá da minha memória.
Alto, com laivos de verde e de castanho, demasiado grande para as minhas mãos, aquele livro seduzia-me. Um dia, à socapa, retirei-o do local onde há muito descansava. Pu-lo sobre a carteira (uma daquelas carteiras que hoje existem...) e sentei-me, a tentar compreendê-lo. Via, em pequenas carreiras, ora um P, ora um M, ora um V, mas as palavras eram ainda tão mágicas quanto a pequena gruta existente entre dois canxos, na encosta virada aos Pomares. D. Maria Guilhermina aproximou-se. Passou a sua mão pelo meu cabelo. Pegou na capa do livro, como quem conduz uma criança pela mão, e ensinou-me a dizer: "O Palhaço Verde".
Só mais tarde soube ler o nome que mais acima se desenhava: Matilde Rosa Araújo. Quando o consegui, surgiu na minha frente uma tela feita de sílabas que foram entrando pelos meus ouvidos, como se fossem a doce voz do vento, sussurrada entre as acácias, os sobreiros e as oliveiras. Tudo começou nesse momento. Uma estranha sinestesia passou a inundar-me. Nela se misturavam o desenho das letras, a música das sílabas e, ao mesmo tempo, um mundo novo que passei a descobrir em todos os recantos da minha aldeia.
Minha mãe (que de há muito ia compondo dentro de mim a essência da poesia nascida na noite dos tempos) um dia lembrou-se de me pegar na mão. De mãos dadas, fomos os dois até ao Rossio. Era uma tarde de sol. Debaixo do plátano, ficámos os dois olhando a curva do cemitério. (No fundo do horizonte, tentava descobrir - sem o saber - o verde do palhaço.) Ouvi, de repente, da boca dos outros companheiros, mais experientes: "Aí vem!". Uma velha carrinha subia com vagar a encosta. Verde, como o palhaço, como a folha rija dos sobreiros. Parou no largo e abriu as portas. Não acreditei. Lá dentro havia livros... Apresentado por minha mãe (leitora assídua durante a adolescência, ali e na casa do ti' Domingos Fernandes), ouvi da boca de um senhor alto e magro, com rosto misterioso: "Parece que gostas de História... Anda cá, há aqui um livro de que vais gostar..." "Quem é este?", perguntei, olhando uma figura solitária que contemplava, numa gravura, meio mundo do alto de um penhasco. "É o Viriato". Levado para casa, foi aquele o primeiro dos tesouros que ao longo de toda a infância me foram emprestando o sr. Faria e o sr. Coimbra. Era sempre com tristeza que os abandonava à sua viagem interminável. Restava-me a tranquilidade de ir guardando na memória palavras e palavras, imagens e imagens, com que fui construindo a arquitectura da minha casa imaginária.
Passaram alguns anos. Cheguei à adolescência rodeado por livros, num vaivém constante entre a Rua da Fonte Nova e os locais sempre distantes em que se resguardavam. Oscar Wilde, Matilde Rosa Araújo, Egito Gonçalves, Jules Verne, Maria Tavares Transmontano, Trindade Coelho (muitos e muitos outros) eram membros de uma galeria pessoal de personagens enigmáticas, estranhas, mas encantadoras.
Certo dia, numa tarde de trovoada, reparei que tinha outros livros em casa. Volumosos alguns, como pedras vivas. Peguei num deles. Tinha um título que falava comigo, habituado às andanças pela serra, descendo a grutas, subindo rochedos, contemplando sozinho a imensidão do mundo: "Folhas Caídas", de Almeida Garrett. Li-o de fio a pavio. No final, respirei, como deve respirar quem recebe um baptismo de imersão. Adormeci (eram seis horas da tarde) e só na manhã seguinte voltei a acordar.
Dias depois escrevi os meus primeiros versos, tão ingénuos e sentimentais que hoje teria pudor de mostrá-los fosse a quem fosse. Nas semanas que se seguiram, li, quase sem parar, o "Há Mais Mundos", de José Régio, a "Mulher de Trinta Anos", do Balzac, "A Mulher Vestida de Branco", de Wilkie Collins...
Nunca mais parei. Nem neste dia - em que releio Cesário Verde e vou saboreando uma biografia de Lou Andreas-Salomé, em que espera por mim o sétimo e último volume de "Em Busca do Tempo Perdido", monumento que me acompanha desde Janeiro de 2004.

Ruy Ventura

9.6.05

10 de Junho

Amanhã é Dia de Portugal. Um excelente dia para celebrar a "Portugalidade", bem longe do país.

Comentários

Caros amigos,
como devem ter notado o actual sistema de comentários não tem funcionado correctamente. O problema arrasta-se há longos dias e não há nenhuma garantia de que venha a ter uma resolução rápida e definitiva. Por isso, resolvemos adicionar o sistema de comentários do próprio blogger. É a caixa de comentários que surge mais à direita, no final de cada post. Agradecemos, portanto, que os comentários sejam feitos através deste novo sistema (não precisa de registo). De qualquer maneira, iremos manter o sistema anterior activo, apenas para que não se percam os comentários de quase dois anos de blogue. Obrigado pela compreensão e pela preferência.

Aguasfurtadas



A Aguasfurtadas é uma revista de literatura, música e artes visuais. O número sete acaba de sair para as livrarias.
Textos de Alexandra Monteiro, Manuel Resende, Alexandra Barreto, Diana Almeida, Margarida Vale de Gato, António Pedro Ribeiro, Vasco Graça Moura, Ana Luísa Amaral, Rui Lage, Ana Cordeiro, Ana Gomes, Pedro Martins, Fernando Moreira, Sophie Kanawa, Paulo Castro, Alexandre Andrade, José Ribamar Neves Filho, Nicolau Saião, Alexandre Delgado, Virgílio Melo, entre outros.
Colaboração de vários fotógrafos e artistas plásticos.
CD com obras de Teresa Ferreira Gentil, Virgílio Melo, Ângela Lopes e Carlos de Andrade, e interpretações de António Rosado e Moscow Piano Quertet, entre outros.

8.6.05

What Watt?



É a nova TRADUÇÃO de Watt, de Becket. Já chegou às livrarias. Mais detalhes aqui.

Lethes

Na Ribeira do Porto, os miúdos lançam-se ao rio, atrás das moedas dos turistas. Nadam e atiram água uns aos outros e fazem gestos obscenos. E, com as moedas enterradas entre os dentes, troçam despudoradamente das barbas brancas de Caronte.

O fim da Byblos

"Após sete anos de investimento e trabalho empenhados, a livraria virtual Byblos vai cessar a sua actividade no próximo dia 30 de Junho.
Esta decisão, muito penosa para toda a equipa da Byblos, decorre das dificuldades económicas e financeiras que a empresa começou a sentir a partir de 2003, devido à crise económica em que Portugal mergulhou, e que se agravaram já no decurso de 2005. Na verdade, entre Fevereiro e Abril do corrente ano, a Byblos viu-se confrontada com graves problemas técnicos, causados pela Netcabo, fornecedora da ligação à Internet, e que provocaram uma quebra das vendas superior a 50% nos meses de Fevereiro, Março e Abril. Estes problemas tornam inviável a prossecução da actividade da Byblos."

O sonho de Ivan Fiodorovitch

Um excerto do conto "Ivan Fiodorovitch Chponka e a Sua Tia", de "Noites na Granja ao Pé de Dikanka", de Gógol. Um pouco longo, é certo. Mas acreditem que vale a pena.

"Deitou-se mais cedo do que o habitual mas, apesar de todos os seus esforços, nunca mais adormecia. Por fim, o desejado sono, esse tranquilizador universal, visitou-o; mas que sonho lhe trouxe! Ainda nunca tinha sonhado com coisa tão incoerente. Ora girava e barulhava tudo à volta dele, e ele a correr, a correr, sem sentir as pernas... já de forças perdidas... de repente, alguém o agarra pela orelha. "Ah! Quem é?" - "Sou eu, a tua mulher!" - dizia-lhe uma voz, alto e bom som. (...) Sente-se esquisito, ele: não sabe como se aproximar dela, do que falar com ela e, além disso, repara que ela tem cara de ganso. Vira-se involuntariamente para o outro lado e vê outra mulher, também com cara de ganso. Vira-se mais uma vez - lá está uma terceira mulher. Mais uma volta - mais uma mulher. Nisto, sente grande aflição. Precipita-se para o pomar, mas no pomar está muito calor. Tira o chapéu e vê: também dentro do chapéu está uma mulher. O suor cobre-lhe a cara. Mete a mão no bolso para tirar o lenço - no bolso também está uma mulher; tira o algodão do ouvido - também lá está uma mulher... E ele, ora, põe-se a saltar ao pé coxinho, e a titi, a olhar para ele, diz com um ar importante: "Sim, tens que saltar, porque já és um homem casado." Aproxima-se dela, mas a titi já não é a titi, é o campanário. Então, sente que alguém o puxa por uma corda para cima do campanário. "Quem é que me está a puxar?" - pergunta lastimosamente Ivan Fiodorovitch. "Sou eu, a tua mulher, estou a puxar-te porque és um sino." - "Não sou nada o sino, sou Ivan Fiodorovitch!" - grita Ivan Fiodorovitch. "És mesmo o sino" - diz o comandante do regimento de infantaria de P*** que passa ao lado. Ou então, sem mais nem quê, sonhava que a mulher dele não era uma pessoa mas um tecido de lã; que ele, em Moguiliov, vai à loja de um comerciante. "Que pano deseja o senhor? - pergunta o comerciante. - Leve a mulher, é o tecido da última moda! Um tecido de primeira! Agora, toda a gente faz sobrecasacas dele." O comerciante mede e corta a mulher. Ivan Fiodorovitch põe-na debaixo do braço e vai ao alfaiate judeu. "Não - diz o judeu -, esta pano não presta para nada! Ninguém faz sobrecasacas dele..."
Cheio de medo, fora de si, Ivan Fiodorovitch acordou. O suor escorria-lhe pela cara abaixo."

Tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra.

Será esta passagem um retrato fiel do próprio Gógol?

7.6.05

Antonin Artaud #2

Volto à carga, porque a Margarida Vale de Gato deixou, numa caixa de comentários, o link duma tradução de "Pour en finir avec le jugement de Dieu", tradução essa em que colaborou.

Como nem todos têm acesso às caixas de comentários, deixo aqui consignada a informação. E mais. Aí vai um cheirinho do texto. Mas só um cheirinho, que ele é muito maior do que isto. Surpreendentemente, este texto é de 1947. Por um milagre qualquer o poeta adivinhou os sinais do mundo.

PARA ACABAR COM O JULGAMENTO DE DEUS

Soube ontem
(possivelmente em atraso, ou talvez que seja só um falso rumor,
um desses mexericos imundos que se propagam entre
lava-louças e latrinas quando se levanta a mesa das refeições
mais uma vez ingurgitadas)
soube ontem
uma das mais sensacionais práticas oficiais das escolas públicas
americanas
e que sem dúvida fazem com que este país se julgue à cabeça
do progresso.
Parece que, entre os exames ou provas a que submetem uma
criança que entra pela primeira vez numa escola pública,
teve lugar a chamada prova do chamado liquido seminal,
ou do esperma,
e que consistirá em pedir a esta criança caloira um pouco do
seu esperma para o inserir num boião
e em guardá-lo assim pronto para todas as tentativas de
fecundação artificial que posteriormente poderão
ocorrer.
Porque cada vez mais os americanos acham que lhes faltam
braços e crianças,
quer dizer, não de trabalhadores
mas de soldados
e eles querem a toda a força e por todos os meios possíveis
fazer e fabricar soldados
[em vista de todas as guerras planetárias que poderão ulteriormente
ter lugar,
e que serão destinadas a demonstrar pelas virtudes esmagadoras
da força
a sobrexcelência dos produtos americanos,
e dos frutos do suor americano em todos os campos da actividade
e do dinamismo possível da força.

Morte negra, morte negra

Os leitores deste blogue, correndo o risco de passarem por maricas, exigem poesia. O Manuel Resende já começou (falo disto aqui porque, mais uma vez, não tenho acesso à caixa de comentários), criando dois actos poéticos altamente subversivos: escamoteou um comando de televisão, o que lhe pode valer prisão (passe a rima), comando que, como se sabe, é a coisa mais democrática que existe à face da terra porque permite trair um programa, abandoná-lo, voltar para ele, matá-lo e ressuscitá-lo, e que, sobretudo, elimina a necessidade de crítica (não gostas, muda de canal, não tens nada que dizer mal), demonstra a inutilidade da crítica, a imbecilidade da crítica (não exagero, há por aí muita alma liberal que tem este conceito inteligente bem arreigado lá no fundo!); o outro acto poético altamente subversivo de Manuel Resende foi ter sonhado com uma floresta comestível. Pois bem, caro senhor, não terá êxito: uma tal floresta depressa seria cortada, empacotada, liofilizada, transportada para os hipermercados, comprada, comida e cagada nas retretes multitudinárias. Agora, o meu contributo para dar poesia a este blogue, partindo do princípio de que a poesia não é útil, não se vende, não é linda, não refrigera nada por este tempo quente e seco: sucedeu que, estando eu na Galiza a tratar de uns papéis (quero ser galego), morreu mesmo ao meu lado, num café de velhos, uma velhota obviamente galega, muito enrugada, mulher ainda bonita. Comentários gerais dos sobreviventes: quando era nova, era a moça mais bonita jamais vista. Era um comentário cruel e vingativo: a senhora não só morrera indecentemente à vista de todos como viera lembrar aos da sua idade a morte natural da beleza uns quarenta anos antes. Há poesia nisto? Rosalia de Castro acha que sim, nesta quadrinha que cito de memória:

Morte negra, morte negra,
cura de dores e enganos!:
por que não matas as moças
antes que as matem os anos?

Filipe Guerra

Mais uma novela da vida irreal

De acordo com o Público de ontem, a Câmara do Porto está a ponderar a transferência do Museu da Ciência e da Indústria, que actualmente se encontra no edifício das Moagens Harmonia, em Campanhã, para a Alfândega do Porto. Segundo parece, as Moagens Harmonia, que são um dos principais exemplares da arquitectura industrial da cidade, estão em vias de se transformar numa pousada de luxo. Ora, na Alfândega já se encontra o Museu dos Transportes. E, por isso e por outras insondáveis razões, os críticos do costume desataram a maldizer a sugestão camarária, sem sequer fazerem um esforço para perceber o seu alcance.
Vamos aos factos. Com esta mudança do Museu da Ciência para a Alfândega, o Porto poderá ser a primeira cidade do mundo (mais um recorde para o Guiness) a ter uma espécie de centro comercial de museus. Mais: para além dos museus da Ciência e dos Transportes, a Câmara poderá ainda instalar na Alfândega o Museu Etnográfico, que continua esquecido e sem local fixo, e até, quem sabe, o futuro Museu dos Grandes Anos do Consulado de Rui Rio. Trata-se de um conceito absolutamente original que, entre outras qualidades, irá contribuir para a tão desejada "democratização da cultura". "Todos os museus num só lugar", poderá ser o slogan deste novo centro comercial dos museus da cidade.

Antonin Artaud

Para quem estiver interessado em ouvir o Antonin Artaud na sua famosa emissão censurada de 1947 "Pour en finir avec le jugement de Dieu", cujo texto foi traduzido para português pela Luísa Neto Jorge, e publicado na &etc, e, ao que sei, vai, ou irá ou iria ser publicado, ou já foi publicado, na Assírio e Alvim em segunda edição, aí vai um link.

Lendo esse texto, até me arrepio: parece um comentário à guerra do Iraque. (Não parece só isso, nem isso é só isso, mas também parece isso). Como é possível um "louco" (ponho, não ponho, aspas?) ver tão longe?

6.6.05

Chagall

Querem poemas?

Então aí vai. Mas não tenho responsabilidade nenhuma. Foi roubado aqui. Aí vai, portanto, um poema de Chagall (sim, o pintor):



só é meu
o país que trago dentro da alma.
entro nele sem passaporte
como em minha casa.
ele vê a minha tristeza
e a minha solidão.
me acalanta.
me cobre com uma pedra perfumada.
dentro de mim florescem jardins.
minhas flores são inventadas.
as ruas me pertencem
mas não há casas nas ruas.
as casas foram destruídas desde a minha infância.
os seus habitantes vagueiam no espaço
à procura de um lar.
instalam-se em minha alma.
eis por que sorrio
quando mal brilha o meu sol.
ou choro
como uma chuva leve
na noite.
houve tempo em que eu tinha duas cabeças.
houve tempo em que essas duas caras
se cobriam de um orvalho amoroso.
se fundiam como o perfume de uma rosa.
hoje em dia me parece
que até quando recuo
estou avançando
para uma alta portada
atrás da qual se estendem altas muralhas
onde dormem trovões extintos
e relâmpagos partidos.
só é meu
o mundo que trago dentro da alma.

(tradução: Manuel Bandeira)

Poesia e Mundo

Muitos protestos tem havido nas caixas dos comentários, por faltar poesia neste blogue.

Certo. Mas, pelo que me parece, falta poesia em geral. O caso do Tratado Constitucional, que tenho abordado como um maníaco, é, permitam-me que lhes diga, apenas um caso.

Sucede que sinto a catástrofe (desculpem o palavrão) a cercar-nos. O chamado "aquecimento global", que é tudo menos um fenómeno linear, antes se pode caracterizar como caótico (inundações e secas, sucessão de frio e quente, fogos florestais e geadas negras em Março), reflecte-se diariamente na minha ridícula e pequena horta.

Eu, que sou essencialmente ignorante em matéria de agricultura, esperava ir aprendendo paulatinamente uma outra maneira de a encarar. Baseava-se essa maneira na lição das florestas: não precisam de adubos para crescerem luxuriantemente, só que as plantas que lá crescem não são comestíveis na sua grande maioria.

A solução seria uma floresta comestível: sem tractores, sem adubos químicos (dependentes portanto dos fósseis de plantas, género petróleo, pois a chamada química orgânica não tem sido mais do que a química do petróleo, dos depósitos fósseis das plantas), que reduziria o efeito de estufa, a dependência do petróleo, etc., etc.

A agro-floresta, além disso, permitiria uma nova ocupação do espaço florestal. E já estava a pensar que os problemas são soluções: a massa verde que há que "limpar" das florestas, em vez de ser uma "despesa", seria uma fonte de riqueza: as folhas, adubo orgânico, a matéria lenhosa, combustível para produção de electricidade ou de gás.

Era todo um sistema: hortas populares com uma rede de troca de sementes, economia cooperativa e solidária, pequenas centrais energéticas, desenvolvimento da química das reacções em estado sólido, desenvolvimento da microbiologia dos solos, muito com que nos entretermos e produzirmos sem deteriorar o património, antes o enriquecendo. Sonhar é fácil, quando conseguimos dormir.

Verifico,porém, agora que a minha horta sem adubos começa a configurar-se como viável, agora que eliminei (sem os matar) os coelhos, apesar de as pequenas árvores (porque o Outrono, não é erro, foi seca e Março foi o que foi) apresentarem estranhas reacções,que as plantas estão stressadas. Uma planta perfeitamente apresentável num dia, aparece no dia seguinte cabisbaixa, porque a temperatura subiu de 18 graus para 35 sem dizer água vai. A rega (ainda me é possível, à minha ridícula escala microscópica) que valia antes já não vale. A terra está tão intrinsecamente seca que qualquer golpe de calor (ainda por cima tão súbito como tem sido) destrói toda a lógica.

Quero eu dizer, a terra é uma ponte entre o mundo mineral e a vida, as plantas, uma ponte entre a terra e nós, animais, e nós, uma ponte entre tudo isso e o céu (um um, presunção). A poesia que eu queria, um improvável equilíbrio entre o mundo lá fora e nós (os vários eus) cá dentro, o acaso objectivo, o ponto sublime em que por maravilha, por instantes, as contradições se resolvem, corre o risco de soçobrar por falta do seu substracto: nós, as plantas, a terra.

Mas estou eu com estas elocubrações meio metafísicas, e logo me dizem aqui ao lado,com certa razão, que o comando da televisão não aparece. Um momento...

Regresso, meia hora depois. O comando da televisão estava na casa de banho. Onde é que eu ia? Já me perdi.

Búuuu

Os jornalistas do Porto são uns malvados. Mentem, criticam, desinformam, enganam as velhinhas, as criancinhas, os profissionais de cabeleireiro, os barbeiros, enfim, o povo inocente. O povo que vive no Porto não sabe em que cidade vive porque perdeu os olhos. Numa noite de lua cheia, os ímpios jornalistas foram a casa das pessoas e trocaram os seus olhos por umas lentes diabólicas que mostram tudo a preto e branco. O Diabo instalou-se de armas e bagagens (mais armas do que bagagens) nas redacções dos jornais. Esta é a terrível verdade.
Caros concidadãos, neste momento decisivo para o futuro da cidade, em que o Túnel de Ceuta não anda nem desanda, em que há ministros mergulhados em espirais de loucura e as eleições estão à porta, só um homem pode conter as malfeitorias do Anticristo. Só há um homem capaz de mostrar o caminho da luz e do bem aos portuenses.

Os que andam às aranhas...


Odilon Redon, "The Crying Spider" (pormenor), 1881.

venenosas, ditas tarântulas, os degredados filhos de Eva, os que cheiram mal, os que estão à rasca, os que são pretos em terra de brancos, os que falam com o cão ou com a aranha porque não têm com quem falar, os que vieram de longe para fugir do medo e da morte e encontram nas nossas ruas europeias o medo e a morte, os que ficam a saber o que é mais desprezo, mais indiferença, mais medo e mais morte, os que sonham que bailam, os que bebem até assumir a morte ainda em vida, os que deixam de falar ainda em vida a não ser com uma bela tarântula bela e sorridente como a morte, os que se enroscam num canto para morrer devagar: estas banalidades da vida (hélas!) formam uma peça de teatro de título A Aranha. Autor: Manuel Poppe. Editor corajoso: Veiga Ferreira da Teorema. Fui no sábado ao lançamento, na FNAC do Chiado. Parece-me uma boa peça para palco, e não só para ler no recato do quarto, feita à boa maneira de Tchékhov (sem imitar o russo), mas sabendo criar como ele uma poesia dolorosa a partir da linguagem mais comum. No lançamento, fiquei a saber mais duas ou três coisas de Manuel Poppe: que é irmão do saudoso Lopes Cardoso do velho PS, que ama a Rússia, que em 1975 fazia parte da multidão que, numa praça de Roma, rezou junto ao corpo de Pier Paolo Pasolini assassinado e ultrajado, e que é um grande comunicador: com um nervosismo contido e contagiante, pôs a falar naquele auditório da FNAC cultural não só os tímidos e os discretos mas também um espanhol e um exagerado mas lúcido profeta.

Filipe Guerra

Um instante de descuido

Ensinai-me a ler os outros
como desejaria que os outros
me lesse a mim.
O que significa o auto sacramental do instante
quais os agravos a incapacidade
do costume e da vontade
perante este escrito onde se ocultam
o rosto e os membros -

corpo e alma...
natureza e graça...
Transparente sabedoria!
a pegada brilha -

Limpai o meu coração
para que me aperceba
da palavra que eclipsa as palavras
Ensinai-me a decifrar a chave!
Ensinai-me a interpretar a mensagem, a escrita oculta
em cada pessoa que encontro -
ensinai-me a ler correctamente

esta chama que me consome
encontra
e abre a escrita com a voz
da sua vocação:
deixa-te encontrar, procuramos por ti!

Östen Sjöstrand (Suécia, n. 1925).
Tradução de Casimiro de Brito (Cadernos de Literatura, nº 19, 1984).

4.6.05

Às vezes não percebo esta gente

Às vezes não percebo esta gente. Diz Pulido Valente no Público de 3 de Junho

«E sobre a América, bastam dois números: a) todo o orçamento do ensino superior em Inglaterra, incluindo o politécnico, não chega a um terço do orçamento da Universidade de Harvard; e b) 51 por cento das patentes registadas por ano são americanas. Contra isto, a França, a Holanda e a «velha Europa» têm o seu «modelo social». Até não terem nada.»

Ora, o orçamento da Universidade de Harvard (2,6 mil milhões de dólares) é equivalente ao orçamento do ensino superior de Portugal (2,1 mil milhões de euros), um país muito mais pindérico do que o Reino Unido. Ainda por cima, cheira-me que não se podem comparar maçãs com peras. Como a «América» é a «América», as Universidades, sobretudo privadas, têm a cargo do seu orçamento rubricas que na Europa são da responsabilidade do Estado em geral. Por exemplo, Harvard gasta cerca de 300 milhões de dólares anualmente com os reembolsos e pagamentos dum sistema de pensões e de previdência para os seus funcionários (não contando pois com certas despesas de funcionamento, como os salários do pessoal que gere esse sistema,respectivas instalações, etc.).

Em tempo. Sobre o das patentes. Na «América» (vulgo, Estados Unidos da mesma),a lei das patentes é diferente da europeia. Por exemplo, Jay Walker patenteou o conceito de leilão inverso que deu origem à Priceline.com, empresa da nova economia (na Europa não se pode patentear um "conceito de negócio"). Jay Walker fundou mesmo uma empresa destinada apenas a inventar ideias de negócios para patentear, tendo declarado à revista Forbes (17 de Maio de 1999):

"Esperamos licenciar certas patentes a empresas já estabelecidas. Se você inventasse uma nova variedade de cereal, queria ser agricultor ou a Monsanto? A vida é curta, seja a Monsanto!"

Grande progresso para a humanidade e fornecedor de argumentos para VPV...

Portanto, coiso, vou dormir!

Ainda em tempo. Assim como quem não quer a coisa, dois investigadores da japonesa Sony inventaram e patentearam um processador que é capaz de dar cabo da Intel. Casados com a IBM, é certo, mas no preciso momento em que a IBM vendeu a parte dos computadores aos chineses, para se dedicar a coisas mais vaporosas, mais imateriais... Portanto, os Jay Walkers deste mundo podem patentear o que quiserem, falta saber para quê. Digo eu.

3.6.05

Vanité


Claude Como, "Vanité", 2005.

Fischer-Dieskau



Um extraordinário texto sobre Dietrich Fischer-Dieskau, no Guardian.

"It is not good to be 80. I did not like being 70, and I like being 80 even less. It is the start of the final episode. I wish I could ignore it."

2.6.05

Claro

Claro que o blogue da Cristina Fernandes é um dos melhores da blogolândia conhecida.

Leitores tortos

"Foi há uns dois anos. Em Curitiba. Eu havia terminado uma conferência sobre arte e pós-modernidade e saí com várias pessoas para comer e beber algo. Acabamos pousando num local que acho tinha o nome de Bar do Batata. E conversa vai e copo vem, fico sabendo que existe naquela cidade uma insólita entidade chamada Sociedade dos Leitores Tortos. (...)
E o Tortomor, que se chama Cláudio, ia me contando como funcionava esse tipo de sociedade (quase) secreta. Começaram quase por acaso e de maneira bem modesta. Reuniram-se, alguns amigos, para comentar os livros que estavam lendo. (...) E a coisa foi engrenando. Começaram a aparecer pessoas interessadas em ver e participar do grupo. De repente, eram já dezenas de leitores tortos encontrando-se regularmente para trocar idéias e emoções em torno dos livros lidos.
Perguntei ao Tortomor que tipo de gente estava se aglutinando ali. Para minha surpresa não eram escritores, e sim engenheiros, advogados, administradores, psicólogos, etc. Isto provocou em mim maior curiosidade. Pensei: eis um modelo de atividade de leitura que pode ser repetido em qualquer comunidade. Não precisa de patrocinador, não carece de ser aprovado pela Lei Rouanet. Basta querer, basta gostar e basta ter alguém com certa liderança que as coisas começam a acontecer. E eles estão lá, na deles. Simplesmente curtindo o que lêem. Ou seja, juntaram as duas pontas do fenômeno leitura: o pessoal e subjetivo com o social e comunicativo. Não falam de redistribuição de riquezas? Está aí a redistribuição de leituras. O imaginário compartilhado."

Excerto da crónica semanal de Affonso Romano de Sant'anna, no Prosa & Verso.

Incidente

Passeando certa vez na velha Baltimore,
Onde tudo coração e espírito me alegrava,
Reparei num Baltimoreano
Que os olhos de mim nunca tirava.

Tinha eu oito anos e era pequenito,
E lá nisso não era ele maior,
Sorri-lhe então, mas deitando fora a língua
Me chamou "preto", dos nomes mais feios o pior.

Visitei Baltimore por mais uns tempos
Desde Maio ainda até Dezembro:
Mas de tudo o que lá me aconteceu
É mesmo só disto que me lembro.

Countee Cullen (E.U.A., 1903-1946).
Tradução de Hélio Osvaldo Alves.

Conclusão

Dentro de cada urna está um tratado morto.

1.6.05

Pirro teve mais uma vitória estrondosa

Sabem perfeitamente que votaria contra o Tratado Constitucional. Devem então pensar que fiquei contentíssimo com a vitória do "nee" nos Países Baixos (desculpem, fum, fum, mas Holanda é só uma província e os frísios, por exemplo, que os outros holandeses medianos acham que são «estúpidos», como os «portugueses» acham que os alentejanos, esse povo soberbo, limpo e digno, são dignos de anedotas estúpidas), uf, uf, já me perdi na sintaxe, mas enganam-se redondamente.

Porque, a Holanda (perdão, frísios, perdão, Rik Jellema, os Países Baixos), sob a aparência de sociedade tolerante, é (perdão, são) o protótipo da sociedade arrogante. Não os holandeses, repare-se, mas sim o banho em que se vive. Uma coisa são as pessoas, excelentes e abertas, outra o caldo em que vivem. Porque na Holanda (perdão, nos Países Baixos), toda a gente é calvinista por educação, até os católicos.

[ATENÇÃO ATENÇÃO: antes de tirarem conclusões apressadas, reparem que os católicos, graças à sua conhecida taxa de reprodução superior (obrigado, Senhor, pelo método Ogino, que até está muito bem dito Ó-gino, pisc pisc), ultrapassaram os calvinistas quantitativamente falando. Portanto, se falo de calvinismo, falo apenas dos costumes culturais que impregnaram a sociedade holandesa por força do calvinismo histórico.]

E presumo que até os muçulmanos, não têm outro remédio [não sei, não investiguei, não me deram subsídios].

E os calvinistas, por definição e educação, ao contrário dos papistas, são intrinsecamente morais e superiores. Não precisam de se ir confessar ao padre, para expiarem os pecados: esta é a regra moral, no dia a dia devem comportar-se de acordo com a sua consciência moral, ao passo que os outros, os papistas, vão à padralhada pedir perdão, pecam e depois tudo lhes é perdoado. Esta é a variante da ideologia dominante que domina na Holanda, perdão, nos Países Baixos. Uma demonstração de que muitas ideologias libertadoras podem transformar-se em ideologias de opressão. Coisa assaz antiga.

[Uma anedota holandesa, perdão, neerlandesa: «Maria (vejam a conotação, digo eu) regressa da cidade à sua aldeia e vai visitar o padre, católico, claro. Este diz: "Então Maria que fazes tu na cidade?" "Sou prostituta" "O quê???""Prostituta!" "Ah, bom, pensei que tinhas dito protestante!"» Risos na plateia do levantatirri]

Onde é que eu ia. Ah! Fiéis ao dogma nacional, "cada um por si, e Deus por todos", os holandeses, desculpem, os neerlandeses, desculpem, na sua maioria, os neerlandeses, ou melhor, os neerlandeses, na sua maioria, fizeram contas à vida e verificaram que o euro significou aumento dos preços (em Portugal e noutros países também, mas na Holanda, desculpem, nos Países Baixos, mais, porque os iluminados que nos governam valorizaram estranhamente o florim), e que há muçulmanos como o caraças em Amesterdão (repare-se, já havia, mas, antigamente, puxa, nós somos superiores, aguentamos com esta escória, deixa-os lá viver, até são castiços, "cada um por si, e Deus por todos") e que os políticos, europeus e paíso-baixenses, os traíram e lhes mentiram.

Pumba: 63% de "nãos" e 37% de "sins".

Não foi o mesmo "não" que em França, onde a discussão política atravessou muito mais toda a sociedade, através da paixão, militância e do suor e lágrimas de muita gente. Não estou aqui a aprovar sociedades ("esta é boa, aquela é má"), acho que estou a mostrar uma realidade.

E, perante este resultado catastrófico da Constituição nos Países Baixos, país tradicionalmente obediente (estranho casamento entre a obrigação moral individual e a liberdade cívica, sendo aquela a fundar esta), apenas digo uma coisa: ainda bem que os descabelados cartesianos franceses (que são tudo menos racionais) disseram "não". Porque esses, ao menos, poderão, se quiserem, perdão, se o quiserem os militantes de esquerda, contribuir para dar uma solução europeista

a

um

problema europeu.

Querem mais uma anedota racista? Não? Então, aí vai:

"O que é que acontece quando um frísio emigra para a Áustria?

Não sabem???

Então eu digo:

A Holanda perde um idiota e a Áustria ganha um engenheiro."

Ah ah ah.